Estava já equipada no Tejo a grossa Armada, que D. Sebastião, em serviço da Santa Liga, ia mandar contra o Turco, e que agora destinava a auxiliar Carlos IX na sua perseguição contra os Huguenotes. Enormes sacrificios se fizeram para formar essa Armada, destruida na noite de 13 de Outubro de 1572 por um violentissimo temporal que á meia noite caíu sobre o Tejo destroçando todos os navios que ahi estavam surtos. A Armada foi totalmente aniquilada: uma grande não veiu despedaçar-se no caes do Corpo Santo; outra foi encalhar e desfazer-se em estilhas no Caes da Rainha; quinze foram dar á costa á Boa Vista, além das que foram de encontro á praia e ao caes. Por todo o rio fluctua vam os cadaveres e os destróços. Além d'estas impressões calamitosas, que alquebravam os espiritos, continuavam na côrte portugueza as dissidencias entre a rainha-avó e o desvairado neto, que procurava coadjuvar Carlos IX, com o que exacerbava a malevolencia de Philippe II. A rainha D. Catherina, achando-se impotente diante da influencia jesuita tencionava retirar-se para Castella. Nas Poesias ineditas de Caminha, (p. 353) vêm umas TrovasQuando a Rainha se queria ir para Castella; ahi vem os pedidos ás Damas para que ella não abandone Portugal; merecem citar-se os seus nomes: D. Anna de Aragão, D. Catherina d'Eça, D. Lianor Anriques, D. Violante de Noronha, D. Madanela d'Alcaçova, Dona Joanna de Crasto, D. Anna de Athayde, D. Maria de Noronha, e D. Francisca de Aragão. Tambem os projectos illusorios de casamentos do joven D. Sebastião, que se manti nha teimosamente no celibato, alarmavam os politicos pelos resentimentos que causava por varias côrtes. D. João de Borja, embaixador de Hespanha em Lisboa, diante dos desvarios de D. Sebastião contra a avó vae a Castella informar Philippe II, que immediatamente manda á côrte portugueza o Duque de Féria a tomar conhecimento das queixas da rainha sua tia. Para terminar este anno terrivel, de 1572, em que appareceram os Lusiadas, terminou depois de gélidas friagens a ultima semana de Dezembro com o facto anormal de cahir neve, gelando as aguas do Tejo em Alcochete. Mais perigosas do que estes cataclysmos da natureza eram as paixões do obcecado fanatismo, que exacerbado pelo odio contra os Lutheranos atacava com furor cego as pessoas contra quem se erguiam suspeitas, ainda que fossem da maior fidalguia. Viu-se na perseguição de D. Antonio, Senhor de Cascaes, e amigo de Camões, que esteve prezo subitamente com toda a sua familia, pela estupida denuncia que tentava entregar Portugal aos lutheranos. Foi n'esta tréva moral que fulgiu como uma estrella de salvação o poema de Camões. Entre os personagens mais respeitaveis da Côrte de D. Sebastião foi profunda a impressão produzida pelos Lusiadas; conservou-se inedito até 1880 um Soneto do Dr. Gaspar Fructuoso, escripto quando veiu para Lisboa o bispo de Miranda nomeado Capellão mór de D. Sebastião: FEITO EM LOUVOR DO GRANDE POETA LUSITANO LUIS DE CAMÕES Com teu grave estylo alto, e soberano, Em tua Lyra, mais doce que a de Orpheo, Cortando as inchadas ondas do Oceano, E's um Poeta escolhido em alto ponto, Tirados outra vez os mil de um conto, E o conto d'entre todos os nascidos. 1 Se o tratamento de Luis não revela uma intimidade pessoal com o poeta, leva a inferir que era já conhecido o Soneto de Tasso ao colto e buon Luigi. A fórma do encomio baseada na segunda especie (função de diminuição) não é um banal prosaísmo; estava em moda pôr em verso a arithemetica como se vê pelo Poema de Simão Fernandes de Tavira. O Soneto do Dr. Gaspar Fructuoso na expressão do sentimento, parece ter primeiramente sido entregue a Camões antes de ser 1 No Ms. das Saudades da Terra, Liv. v, cap. XXV, onde entre prosas imitando as Saudades de Bernardim Ribeiro, vêm diversas poesias do Dr. Gaspar Fructuoso. Este Soneto foi publicado pelo Dr. Ernesto do Canto no Archivo dos Açores, vol. 1, p. 409, e no n.o 55 da Epoca, de Ponta Delgada. 2 No Canc. geral de 1902, p. 245. intercalado na parte novellesca das Saudades da Terra. 1 Ha um Soneto de Camões (n.° CXCII) a Estacio da Fonseca, repassado de intima benevolencia, como de agradecimento a louvores tributados aos Lusiadas; perderam-se as obras d'este poeta e assim o louvor prestado, que se infere do soneto: 0 1 Cabe aqui uma noticia biographica do historiador insulano Dr. Gaspar Fructuoso. Nasceu no anno de 1522, na então villa de Ponta Delgada, setenta e outo annos decorridos do descobrimento da ilha de San Miguel. Era seu pae lavrador chão e abonado, dedicando como tal o filho para a vida do campo; Gaspar Fructuoso sentiu uma propensão irresistivel para os estudos das Humanidades, e todas as vezes que seu pae o mandava tomar conta dos trabalhos ruraes, elle distrahia-se com varias leituras dos livros com que sempre andava acompanhado Isto decidiu o bom do pae a mandal-o para uma das principais Universidades da Europa; conta o P Antonio Cordeiro, na Historia insulana, que fôra cursar o trivium e quadrivium na Universidade de Salamanca, recebendo alli o gráo de Mestre em Artes. Regressou á Ilha de S. Miguel para receber as ordens do sacerdocio, voltando para Salamanca a tomar o gráo de Doutor em Theologia. Alli ouviu as lições do celebre moralista Fr. Domingos de Sotto. A fama de suas virtudes e sabedoria lhe grangeou a amisade dos grandes dignatarios da Egreja portugueza; o bispo de Miranda D. João d'Alva o fixou por algum tempo junto de si: leu theologia no Collegio dos Jesuitas de Bragança, d'onde veiu para Lisboa quando o Bispo de Miranda foi nomeado Capellão mór de D. Sebastião. A mitra de Miranda foi-lhe instantemente offerecida, mas Gaspar Fructuoso preferiu voltar para Ilha de San Miguel, trocando o báculo por uma simples vigairaria de N. S. da Estrella na villa da Ribeira Grande. Viveu vida quieta e occupada com a pratica das virtudes, morrendo em 24 de Agosto de 1591, com setenta annos de edade. A sua livraria excedia quatrocentos volumes; foi deixada ao Collegio dos Jesuitas de Ponta Delgada, ao qual fez depositario Agora toma a espada, agora a pena, Cysne sonoro per ribeira amena De mi para cantar-te é cobiçado: Se eu, que a penna tomei, tomei a espada, D'esta alta influição de dois planetas; Com uma e outra luz d'elles lograda, Tu, com pujante braço, ardente engenho, do Manuscripto seu intitulado Descobrimento das Ilhas ou Saudades da terra. Este livro notavel da Historia dos Açores, á parte os largos trêchos publicados por Alvaro Rodrigues de Azevedo e por Francisco Maria Supico, está ainda inedito. Quando o ministro de D. José fez executar o decreto da expulsão dos Jesuitas, o reitor do Collegio de Ponta Dolgada, em presença da corporação offereceu o livro ao Governador da Ilha de San Miguel, Antonio Borges de Bettencourt, para que o conservasse. N'esse mesmo dia a Fragata Graça levou todos os Jesuitas da ilha de San Miguel. Do Governador passou o livro das Saudades da Terra para o seu herdeiro o Ouvidor Luiz Bernardo, vigario da Alagoa, passando tambem por herança a José Velho Quintanilha, que o vendeu a Duarte Borges de Medeiros, primeiro Visconde da Praia, conservando-se ainda na casa Praia e Monforte. Existem duas copias d'este valiosissimo Manuscripto, uma que pertenceu ao erudito açoriano João de Arruda, authenticada por dois tabelliães, e que foi adquirida por José do Canto, espirito primacial; a outra pode lêr-se na Bibliotheca nacional, sendo o traslado feito pelo Corregedor Veiga. Algumas d'estas noticias foram colligidas de informações do professor de latim Caetano Antonio de Mello, e do interessante estudo Historiadores insulanos do meu antigo amigo e condiscipulo de Lyceu Antonio Pereira. |