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Determinamos pela primeira vez a situação da morte de Camões. 1

Desde que os Vereadores da Camara de Lisboa foram todos do partido de Castella, e exercia o cargo de Provedor-mór da Saude o Dr. Fernão de Pina Marrecos, escolhido pelo Cardeal Rei, que demittiu Diogo Salema que era do partido nacional, tratou-se de expulsar de Lisboa a titulo de impedidos (pestiferados) e para melhor defeza da cidade os individuos contrarios a Castella. Os Governadores e Defensores do Reino, que cooperavam na traição, escreveram de Almeirim uma Carta datada de 27 de Março de 1580, ordenando estas tropelias sob a auctoridade do Provedor mór da Saude. Essa carta explica nos o motivo por que foi levado Camões de sua casa para o hospital provisorio ou Casa dos Doentes:

«Nós os Governadores e Defensores d'estes Reinos e Senhorios, etc. Fazemos saber a vós Fernão de Pina, vereador da cidade de Lisboa e Guarda-mór da Saude d'ella, que vimos vossa carta de XXII d'este (Março) e pela muyta importancia de que he essa cidade para defensão do Reyno, e pera as cousas que se pera isso requerem, cumpre que o despejo dos doentes d'ella e a diligencia com que se hade fazer, corresponda a esta neces

1 A doença que de Gôa traria Camões era o impaludismo, a que se chamava Mordexyn, com inchaços de estomago, vomitos, até cahir em desfalecimento. Eram phenomenos suspeitos para o Provedor-mór da Saude, convindo-lhe confundil-os com os da peste para sobre o poeta exercer a violencia do isolamento forçado.

sidade, em que por horas ha perigo na tardança; pello que cumpre que em huma hora se possivel, trateis de despejar a cidade dos doentes que nella ha, e valendo-vos para isso de todos os Corregedores e Juizes do crime e Alcaides, e que se não occupem de outra cousa; e pera seu gasalhado podeis haver de Luiz Cesar as tendas necessarias, que vos para isso dará, e abastará mostrando-lhes esta Carta para o fazer por ora, porque apoz ella irá qualquer outra Provisão que necessaria fôr; para os gasalhados que ordenaes he muy bem feito, mas he modo mais vagaroso do que convem; e no despejo da gente deveis de levar mais esquifes e mais gente, que andem n'isso com escadas e tavoas sobre ellas; e os que tiverem posse para se passar e curar fóra hade ser a sua conta; de modo que de uma maneira e de outra a cidade se despeje e desempida dos doentes, pera depois d'isso se poderem caiar as casas e se lhe fazerem outros officios, com que, com ajuda de Ds. acabe de se ispedir este mal; e poreis n'isto toda vossa deligencia e industria, não avendo que fazeis menos que dar remedio a este Reyno ou desbaratar um exercito...»

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Taes violencias exerceu o Provedor-mór da Saude, o jurisconsulto Fernão de Pina Marrecos, que foi assassinado em 7 de Abril de 1580, segundo se afirmava, pelos partidarios do Prior do Crato, isto é, por aquelles contra quem se exerciam estas violencias sa

1 Liv. 1 do Provimento da Saude, fl. 219. (Elementos para a Historia do Municipio de Lisboa, t. 1, p. 486.)

nitarias. E ainda depois da morte do Provedor, os traidores do Governo ordenaram aos Vereadores: «que se prosiga no que Fernam de Pina n'isso ia fazendo, e a cidade se vá desempedindo...» Foi entre fins de Março e 7 de Abril de 1580, que o Provedor-mór da Saude, do partido castelhano, arrojou Camões, que estava opprimido da doença, ao barracão dos pestiferados. O facto de deixar o poeta de receber o primeiro quartel da sua tença de Março a Abril de 1580, revela a violencia a que se achara submettido. Nos seus versos fixou a expressão d'este horror em que se via.

Ao terminar o cyclo da sua vida sob os horrores de uma tremenda peste como aquella do anno em que nascera, o poeta desolado pelas desgraças publicas que conduziam a uma catástrophe nacional, representou esta amargura no Soneto CCCXXXIX, colligido no Cancioneiro de Luiz Franco:

O dia, hora em que naci moura e pereça,
Não o queira jámais o tempo dar.
Não torne mais ao mundo, e se tornar
Eclipse n'esse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se escureça,

Mostre o mundo signaes de se acabar,
Naçam-lhe monstros, sangue chova o ár,
A mãe ao proprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas de ignorantes,

As lagrimas no rosto, a côr perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Oh gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jámais se viu.

N'este verso final synthetisa toda a sua torturada existencia. Têm as suas palavras a magestade das imprecações de Job; e o poeta, que soube resumir n'um grito o cyclo inteiro da vida, mal suspeitava que a sua morte seria ainda mais desgraçada.

O Morgado de Matheus publicou um documento que authentica ter Camões morrido no hospital, como se repetia nas tradições: «Não pode mais duvidar-se que este foi seu tragico fim, como refere Diogo Barbosa, porque no original de Lord Holland, que tenho presente, e que pertenceu a um Fray Josep Indio, que deixou no Convento das Carmelitas Descalsas de Guadalaxara, acho confirmada esta opinião no que este religioso escreveu de sua letra na primeira folha, aonde diz como testemunha ocular: Qué cosa mas lastimosa que ver un tan grande ingenio mal logrado! Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa, sin tener una savana con que cobrirse, despues de aver triumfado en la India Oriental y de aver navegado 5500 leguas por mar; qué aviso tan grande para los que de noche y de dia se cançan estudiando sin provecho como la araña en urdir tellas para cazar moscas.

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1 Lusiadas. Ed. Morgado Matheus, p. LXX: «Este exemplar muito bem conservado me foi confiado por Lord Holland com uma generosidade digna de seu amor á litteratura, e uma benevolencia para mim, de que lhe peço queira receber aqui os mais vivos agradecimentos.» (Ib., p. vi). Ignora-se hoje o paradeiro do exemplar de Lord Holland. Com o nome de Joseph Indio encontramos descripta uma Relacion del Viage que hiço de Cananor en la India á Portugal, impresso em 1533.

Na carta dos Governadores do Reino aos enviados a Philippe II, datada de Almeirim em 4 de junho de 1580, allude-se á peste que então grassava: «E por a vossa carta nos ser dada estando pera nos passar a Setuvall, por muitos rebates de peste que houve n'este logar, de que faleceu o Conde da Calheta Joam Gonçalves da Camara ē tres dias, e a reposta requerer conselho e muyta consideração, a deferimos pera Salvaterra, pera onde hoje nos partimos esperar segundo recado da saude de Setuvall, d'onde vos responderemos...» 1 Por esta carta se vê que em Junho de 1580, a peste que forçara os Governadores do reino a deixarem Lisboa, fugindo para Almeirim, os obrigara a retirar-se para Sal vaterra, e em seguida para Setubal, n'esta terrivel instabilidade. E' de uma quarta feira esta carta; na terça feira seguinte, 10 de junho de 1580, expirava Camões no hospital, segundo a tradição coéva. Tudo leva a inferir que fôra internado em cumprimento dos regulamentos que obrigavam ao isolamento os pestiferados. E isto explica o desconhecimento do dia, mez e anno da sua morte pelos contemporaneos, e a ignorancia absoluta do logar aonde foi sepultado, por que promiscuamente o arrojaram á vala commum com as outras victimas da peste.

O facto de ter Camões morrido no hospital, embora ignorado pelo seu commentador comparochiano Manoel Corrêa, que diz apenas: «morreu quasi ao desamparo,» acha-se

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Archivo historico portuguez, vol. 1, p. 216.

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