E o deos, que foi n'hum tempo corpo humano, E por virtude da herva poderosa Foi convertido em peixe, e deste dano Lhe resultou deidade gloriosa, Inda vinha chorando o fêo engano, Que Circe tinha usado co'a formosa Scylla, que elle ama, desta sendo amado; Que a mais obriga amor mal empregado,
Reunem-se os deoses do mar no palacio de Neptuno
Já finalmente todos assentados Na grande sala, nobre e divinal, As deosas em riquissimos estrados, Os deoses em cadeiras de crystal; Foram todos do Padre agasalhados, Que co'o Thebano tinha assento igual: De fumos enche a casa a rica massa
Que no mar nasce, e Arabia em cheiro passa.
Estando socegado já o tumulto Dos deoses, e de seus recebimentos, Começa a descobrir do peito occulto A causa o Thyoneo de seus tormentos: Hum pouco carregando se no vulto, Dando mostra de grandes sentimentos, Só por dar aos de Luso triste morte Co'o ferro alheio, falla desta sorte:
Discurso de Baccho para excitar a ira de Neptuno e de todas as divindades do mar contra os Portuguezes
Principe, que de juro senhorêas
D'hum polo ao outro polo o mar irado, Tu, que as gentes da terra toda enfrêas; Que não passem o termo limitado: E tu, padre Oceano, que rodêas
O mundo universal, e o tens cercado, E com justo decreto assi permites, Que dentro vivam só de seus limites:
E vós, deoses do mar, que não soffreis Injuria alguma em vosso reino grande, Que com castigo igual vos não vingueis De quem quer, que por elle côrra, e ande: Que descuido foi este, em que viveis? Quem pode ser, que tanto vos abrande Os peitos, com razão endurecidos
Contra os humanos fracos, e atrevidos?
Vistes, que com grandissima ousadia Foram já commetter o ceo supremo: Vistes aquella insana phantasia De tentarem o mar com vela, e remo: Vistes, e ainda vemos cada dia Soberbas, e insolencias taes, que temo, Que do mar e do ceo em poucos annos Venham deoses a ser, e nos humanos.
Védes agora a fraca geração, Que d'hum vassallo meu o nome toma, Com soberbo, e altivo coração
A vós e a mi, e o mundo todo doma: Vêdes, o vosso mar cortando vão, Mais do que fez a gente alta de Roma: Vêdes, o vosso reino devassando, Os vossos estatutos vão quebrando.
Eu vi, que contra os Minyas, que primeiro No vosso reino este caminho abriram, Boreas injuriado, e o companheiro Aquilo, e os outros todos resistiram: Pois se do ajuntamento aventureiro Os ventos esta injuria assi sentiram, Vós, a quem mais compete esta vingança, Que esperais? Porque a pondes em tardança?
E não consinto, deoses, que cuideis, Que por amor de vós do ceo desci, Nem da magoa, da injuria, que soffreis, Mas da que se me faz tambem a mi; Que aquellas grandes honras, que sabeis, Que no mundo ganhei, quando venci As terras Indianas do Oriente, Todas vejo abatidas desta gente:
Que o grão Senhor, e fados, que destinam, Como lhe bem parece, o baixo mundo, Famas mores, que nunca, determinam. De dar a estes Barões no mar profundo: Aqui vereis, ó deoses, como ensinam O mal tambem a deoses; que, a segundo Se vê, ninguem já tem menos valia, Que quem com mais razão valer devia.
E por isso do Olympo já fugi, Buscando algum remedio a meus pezares; Por vêr o preço, que no ceo perdi, Se por dita acharei nos vossos mares. Mais quiz dizer, e não passou daqui; Porque as lagrimas já correndo a pares Lhe saltaram dos olhos, com que logo Se accendem as deidades d'agua em fogo.
Effeito produzido pelo discurso de Baccho
A ira, com que subito alterado.
O coração dos deoses foi n'hum ponto, Não soffreo mais conselho bem cuidado, Nem dilação, nem outro algum desconto: Ao grande Eolo mandam já recado Da parte de Neptuno, que sem conto Solte as furias dos ventos repugnantes; Que não haja no mar mais navegantes.
XXXVI
Bemquizera primeiro alli Proteo Dizer neste negocio o, que sentia, E, segundo o que a todos pareceo, Era alguma profunda prophecia: Porêm tanto o tumulto se moveo Subito na divina companhia, Que Thetys indignada lhe bradou: « Neptuno sabe bem o que mandou. »
XXXVII
Já lá o soberbo Hippótades soltava Do carcere fechado os furiosos Ventos, que com palavras animava Contra os Barões audaces, e animosos. Subito o ceo sereno se obumbrava; Que os ventos mais, que nunca, impetuosos Começam novas forças a ir tomando, Torres, montes, e casas derribando.
Em quanto se fazia o conselho dos deoses do mar no palacio de Neptuno, conta Velloso a seus companheiros, em hum dos navios da frota Portugueza, a aventura dos doze Portuguezes que em Londres venceram em hum torneio doze cavalleiros Inglezes
XLIV
Entre as damas gentis da côrte Inglesa, E nobres cortezãos acaso hum dia Se levantou Discordia em ira accesa, Ou foi opinião, ou foi porfia:
Os cortezãos, a quem tão pouco pesa Soltar palavras graves de ousadia, Dizem, que provarão, que honras e famas. Em taes damas não ha para ser damas.
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