Nem tam pouco direi, que tome tanto Em grosso a consciencia limpa e certa, Que se enleve n'hum pobre e humilde manto, Onde ambição acaso aude encoberta:
E quando hum bom em tudo he justo, e santo, Em negocios do mundo pouco acerta; Que mal com elles poderá ter conta A quieta innocencia, em só Deos pronta.
Vasco da Gama, sabedor dos enredos e tramas dos Mouros, determina fallar ao Samorim. Este o manda chamar, e lhe significa a sua desconfiança e procura justifica-la.
Fallar ao Rei gentio determina, Porque com seu despacho se tornasse; Que já sentia em tudo da malina Gente impedir-se, quanto desejasse. O Rei, que da noticia falsa e indina Não era d'espantar se s'espantasse, Que tão credulo era em seus agouros, E mais sendo affirmados pelos Mouros:
Este temor lhe esfria o baixo peito: Por outra parte a força da cobiça, A quem por natureza está sujeito, Hum desejo immortal lhe accende, e atiça; Que bem vê, que grandissimo proveito Fará, se com verdade, e com justiça O contrato fizer por longos annos, Que lhe commette o Rei dos Lusitanos,
Sobre isto nos conselhos, que tomava, Achava mui contrarios pareceres; Que naquelles, com quem se aconselhava, Executa o dinheiro seus poderes: O grande Capitão chamar mandava, A quem, chegado, disse: Se quizeres Confessar-me a verdade limpa e nua, Perdão alcançarás da culpa tua:
I
Eu sou bem informado, que a embaixada, Que de teu Rei me désté, que he fingida; Porque nem tu tens Rei, nem patria amada, Mes vagabundo vás passando a vida; Que quem da Hesperia ultima alongada. Rei, ou senhor, de insania desmedida, Ha de vir commetter com nãos e frotas Tão incertas viagens, e remotas?
E, se de grandes reinos poderosos O teu Rei tem a regia magestade, Que presentes me trazes valerosos, Sinaes de tua incognita verdade? Com peças, e dons altos sumptuosos Se lia dos Reis alios a amizade; Que sinal, nem penhor não são bastante As palavras d'hum vago navegante.
Se por ventura vindes desterrados, Como já foram homens d'alta sorte, Em meu reino sereis agasalhados; Que toda a terra he patria para o forte: Ou se piratas sois ao mar usados, Dizei-mo sem temor de infamia, ou morte; Que, por se sustentar em toda idade, Tudo faz a vital necessidade.
0 Gama, respondendo ao Samorim, repulsa as suas suspeitas, e exige delle prompto despacho
Isto assi dito, o Gama, que já tinha Suspeitas das insidias, que ordenava 0 Mahometico odio, donde vinha Aquillo, que tão mal o Rei cuidava: C'huma alta confiança, que convinha, Com que seguro credito alcançava, Que Venus Acidalia lhe influia, Taes palavras do sabio peito abria:
Se os antiguos delictos, que a malicia Humana commetteo na prisca idade, Não causaram, que o vaso da nequicia, Açoute tão cruel da Christandade, Viera pôr perpetua inimicicia Na geração de Adão co'a falsidade, (0 poderoso Re) da torpe seita; Não conceberas tu tão má suspeita:
Mas, porque nenhum grande bem se alcança Sem grandes oppressões, e em todo o feito Segue o temor os passos da esperança, Que em suor vive sempre de seu peito; Me mostras tu tão pouca confiança Desta minha verdade, sem respeito Das razões em contrario, que acharias, Se não cresses, a quem não crer devias:
Porque, se eu de rapinas só vivesse, Undivago, ou da patria desterrado; Como crês, que tão longe me viesse Buscar assento incognito e apartado? Por que esperanças, ou por que interesse, Viria exprimentando o mar irado, Os Antarcticos frios, e os ardores, Que soffrem do Carneiro os moradores!
Se com grandes presentes d'alta estima O credito me pedes do, que digo;
Eu não vim mais, que a achar o estranho clima, Onde a natura pôz teu reino antigo:
Mas, se a fortuna tanto me sublima,
Que eu torne à minha patria, e reino amigo; Então verás o dom soberbo e rico,
Com que minha tornada certifico.
Se te parece inopinado feito,
Que Rei da ultima Hesperia a ti me mande; O coração sublime, o regio peito Nenhum caso possibil tem por grande: Bem parece, que o nobre, e grão conceito Do Lusitano espirito demande Maior credito, e fé de mais alteza, Que crêa delle tanta fortaleza.
Sabe, que ha muitos annos, que os antigos Reis nossos firmemente propozeram De vencer os trabalhos, e perigos,
Que sempre ás grandes cousas se oppozeram: E, descobrindo os mares inimigos
Do quieto descanso, pretenderam De saber, que fim tinham, e onde estavam As derradeiras praias, que lavavam.
Conceito digno foi do ramo claro Do venturoso Rei, que arou primeiro O mar, por ir deitar do uinho charo O morador de Abyla derradeiro: Este por sua industria, e engenho raro, N'hum madeiro ajuntando outro madeiro, Descobrir pôde a parte, que faz clara De Argus, da Hydra a luz, da Lebre, e da Ara.
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