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XCVIII

Este rende munidas fortalezas,
Faz traidores, e falsos os amigos:
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega capitães aos inimigos:
Este corrompe virginaes purezas,

Sem temer de honra ou fama alguns perigos:
Este deprava ás vezes as sciencias,
Os juizos cegando, e as consciencias.

XCIX

Este interpreta mais que subtilmente
Os textos: este faz, e desfaz leis:
Este causa os perjurios entre a gente:
E mil vezes tyrannos torna os Reis.
Até os, que só a Deos Omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis,

Que corrompe este encantador, e illude;
Mas não sem côr com tudo de virtude.

EXCERPTOS DO CANTO IX

Monçaide avisa os Portuguezes da trama dos Mouros, que aguardando a proxima chegada das náos de seus correligionarios do porto de Gidá pelas quaes seria destruida a frota Portugueza, detinham fraudulentamente em terra os feitores mandados pelo Gama para a venda e troca de mercadorias em Calecut.

I

Tiveram longamente na cidade,

Sem vender-se, a fazenda os dous feitorès;
Que os infieis por manha, e falsidade
Fazem, que não lha comprem mercadores;
Que todo seu proposito, e vontade,
Era deter alli os descobridores
Da India tanto tempo, que viessem
De Meca as nãos, que as suas desfizessem.

II

Lá no seio Erythrêo, onde fundada
Arsinoe foi do Egypcio Ptolomeo,
Do nome da irmãa sua assi chamada,
Que despois em Suez se converteo,
Não longe o porto jaz da nomeada
Cidade Meca, que se engrandeceo
Com a superstição falsa, e profana
Da religiosa agua Mahometana.

III

Gidá se chama o porto, aonde o trato
De todo e Roxo mar máis florecia,
De que tinha proveito grande e gralo
O Soldão, que esse reino possuia.
Daqui aos Malabares, por contrato
Dos infieis, formosa companhia.
De grandes nãos pelo Indico Oceano
Especiaria vem buscar cada anno.

IV

Por estas nãos os Mouros esperavam,
Que, como fossem grandes e possantes,
Aquellas, que o commercio lhe tomavam,
Com flammas abrazassem crepitantes:
Neste soccorro tanto confiavam,
Que já não querem mais dos navegantes,
Senão que tanto tempo alli tardassem,
Que da famosa Méca as nãos chegassem..

Mas o Governador dos ceos, e gentes,
Que, para quanto tem determinado,
De longe os meios dá convenientes,
Por onde vem a effeito o fim fadado;
Influio piedosos accidentes

De affeição em Monçaide, que guardado
Estava para dar ao Gama aviso,
E merecer por isso o Paraiso.

VI

Este, de quem se os Mouros não guardavam,
Por ser Mouro, como elles, antes era
Participante em quanto machin vam;
A tenção lhes descobre torpe e fera;
Muitas vezes as nãos, que longe estavam,
Visita, e com pied de considera

O damno, sem razão, que se lhe ordena
Pela maligna gente Sarracena:

VII

Informa o cauto Gama das armadas,
Que de Arabica Meca vem cada anno,
Que agora são dos seus tão desejadas,
Para ser instrumento deste dano:
Diz-lhe, que vem de gente carregadas,
E dos trovões horrendos de Vulcano,
E que pode ser dellas opprimido,
Segundo estava mal apercebido.

0 Gama manda recolher ås nãos os feitores. Sabendo que elles ficavam presos em terra usa de represalias. Os Mouros para resgate dos seus põe os feitores em liberdade. Os Portuguezes fazem-se á veľa do porto de Calecut.

VIII

0 Gama, que tambem consideráva
O tempo, que para a partida o chama,
E que despacho já não esperava

Melhor do Rei, que os Mahometanos ama:
Aos feitores, que em terra estão, mandava
Que se tornem ás naos: e, porque a fama
Desta subita vinda os não impida,
Lhe manda, que a fizessem escondida.

IX

Porém não tardou muito, que voando
Hum rumor não soasse com verdade,
Que foram presos os feitores, quando
Foram sentidos vir-se da cidade,
Esta fama as orelhas penetrando
Do sabio Capitão, com brevidade,
Faz represalia n'huns, que ás náos vieram
A vender pedraria, que trouxeram.

X

Eram estes, antiguos mercadores,
Ricos em Calecut, e conhecidos:
Da falta delles, logo entre os melhores
Sentido foi, que estão no mar retidos.
Mas já nas náos os bons trabalhadores
Volvem o cabrestante, e, repartidos
Pelo trabalho, huns puxam pela amarra,
Outros quebram co'o peito duro a barra;

XI

Outros pendem da verga, e já desatam
A vela, que com grita se soltava;
Quando com maior grita ao Rei relatam
A préssa, com que a armada se levava:
As mulheres, e filhos, que se matam,
Daquelles, que vão presos, onde estava
O Samorim, se aqueixam, que perdidos
Huns tem os pais, as outras os maridos.

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