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Lá no meio do Rocio
Levanta a voz mui serena
Como se aprendera solfa:
«Eu tenho camoezas

A voz tão divina e grave,
A voz tão de prata e bella,
Os galantes se alvorotam
E ferve a bulha na feira.

Deixam todos as boninas
Só por ver esta açucena;
Em um momento, cercada
Se viu esta fortaleza.

Os requebros que lhe dizem
São balas de feras peças:
Mas no muro de seu peito
Acham grande resistencia.

Uns apreçavam a fruta,
Outros tiram da algibeira
Ás manchcias os tostões,
Aos alqueires as moedas.

Mas Luiza, mui de espaço,
Levantando a voz tão bella,
De quando em quando repete:
«Eu já tenho camoezas.»

Hoje em dia, por acerto haverá ahi poetastro a quem pareçam, sequer toleraveis, estas linhas toadas, sem faisca de ideal, sem realismo, sem as satanisações modernas; no entanto, o coração entende-se melhor n'aquelles poetas que, em vez de se evolarem á poeira luminosa da via-lactea, andavam alli pelo Rocio amoriscados de fruteiras de camoezas.

Por causa d'estes amores innocentes e frescos, não foi Antonio Serrão de Castro disputar aos ratos da inquisição a magra pitança da sua alcofa. O leitor alguma vez ha de lêr os queixumes do hebreu, repassados de tanta ironia, que a gente se admira que os graves monges de S. Domingos lhe não acendrassem o engenho no fogo.

Quando o poema satyrico se escoou das grades do carcere para a assembléa dos catholicos, um poeta christão, no intuito de apressar o processo do judeu, divulgou as seguintes decimas:

Judeu de mau proceder,

Que, se em teus versos discorro,
Logo pareces cachorro,
No ladrar e no morder.
Ainda espero ver-te arder,
Pois com tanta sem-razão
Murmuras da inquisição;
Porém, é força em teu erro,
Se te tratam como perro,
Que te vingues como cão.

Dos ratos, d'esta maneira,
Te queixas e de seus tratos;
É mau queixar-te dos ratos,
Estando na ratoeira.

Tua allusão sorrateira

Saber o engenho procura,
E a rhetorica se apura
N'esta allusão que formaste,
Pois d'esta figura usaste,
Antes de fazer figura.

Nescio, depois de judeu,
Quando o sambenito mamas,
Triste portuguez te chamas,
Sendo o mais astuto hebreu!
Quem te vira posto em breu
Ou partido de uma bala!
Ninguem comtigo se iguala,
Pois fazes, quando precito,
Sendo infame o sambenito,
D'esse sambenito gala.

Se viveste descortez,
Com repetida torpeza,
Mais á lei da natureza
Do que na lei de Moysés,
Queixa-te só d'esta vez
De ti, mas não de outro trato;
Que eu sei que nunca do rato
Te queixáras, asneirão,
Se assim como foste cão,
Poderas tornar-te gato.

Os ferventes desejos d'este catholico, assim rimados, chegaram ao ergastulo do cantor dos ratos, e vibraram-lhe os nervos da espinha dorsal. Não lhe pareceu caso novo e original queimarem-no. Embridou, por tanto, a musa da galhofa, e cahiu em si. Começou de escrever poesias or

thodoxas ao nascimento do Menino-Deus, aos santos e santas mais em voga, ungindo tudo de lagrimas de contrição que era uma piedade ler-lhe os sonetos, os quaes, ainda agora, li bastantemente commovido. O certo é que o vaticinio do bardo christão foi desmentido pelo hebreu que sahiu absolto, e por ahi andou por Lisboa até aos setenta e quatro annos, rindo de tudo com resalva das conveniencias, e vivendo com as largas, que lhe davam os seus admiradores, e acamaradado com os primeiros fidalgos. Nasceu em 1610 e morreu em 1684.

FIM DO 4.° NUMERO

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