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PROLOGO.

Salteado

alteado pela morte o eximio poeta Virgilio antes de haver pôsto a última lima á sua Eneida, a Tucca e Varo, ou Vario (que nisto não concordão os autores) encommendou Augusto que, revendo aquella immortal obra, corrigissem quanto julgassem vício de penna, mas nenhuma cousa accrescentassem ou ommittisem

do que o autor escrevera. E vivendo nesse tempo e frequentando a sua côrte Horacio, poeta não menos insigne no seu genero, lhe não quiz confiar tão melindroso trabalho; ou porque, differindo os dous genios um do outro essencialmente no estilo e gôsto, lhe não desfigurasse os pensamentos e imagens, revestindo-os de outra côr; ou porque, não se podendo saber ao certo depois quaes e quantas havião sido as emendas, não viesse a fama deste a diminuir a daquelle. E nem por isso foi censurado aquelle judicioso monarcha; antes mereceo os louvores de toda a posteridade: sendo assim que as obras dos summos escriptores nem por outros igualmente summos, nem

por ignorantes e idiotas se devem rever e corrigir ; mas sim por homens doutos e de fino tacto.

Se taes houvessem sido os editores dos nossos classicos, não tiveramos o desgôsto e mágoa de ver hoje seus escriptos assim desfigurados e corruptos. E, por cúmulo de desgraça, os que mais tem experimentado os estragos da ignorancia, são os do mais insigne de todos, o grande e immortal Camões; mormente o seu poema dos Lusiadas; monumento que nenhuma outra nação, antiga ou moderna, se póde jactar de possuir; não porque em muitas dellas não tenha havido grandes e abalisados poetas epicos, mas pela grandeza da acção, e porque nenhum desses poetas, qualquer que fosse o seu genio e merecimento, reunio em si em tão eminente grao, como o nosso, todos os dotes e requisitos de um summo e verdadeiro escriptor: grandeza de engenho, viveza de imaginação, veia inesgotavel, profunda erudição em todo genero de lettras, impulso natural e proprio, e sobretudo amor da verdade, estima de si mesmo, e independencia e constancia d'alma, superior a toda a fortuna. Pois a tanto chegou a ignorancia e audacia dos editores, que sôbre haverem conservado muitos e mui grosseiros erros das primeiras edições, que devêrão emendar, não so corrompêrão ainda em muitos lugares o texto, mas até (cousa inaudita!) viciárão o mesmo titulo da obra.

Em 1572 sahio pela primeira vez á luz, impresso em Lisboa, na officina de Antonio Gonçalves, este divino poema; mas tão desfigurado, que nesse mesmo anno se julgou necessario fazer segunda edição: na qual se emendárão alguns erros de pouca monta, conservando-se os de maior importancia, e se commettêrão outros de novo: e n'uma e n'outra os pontos e virgulas se achão semeados ao acaso, de sorte que mais servem de embaraço, que de esclarecimento ao sentido.

Cousa he certamente estranha e dura de crer, que fazendo-se duas edições, vivendo ainda o poeta e residindo no mesmo lugar onde se imprimia a sua obra, não puzesse elle toda a sua diligencia e cuidado em que esta sahisse com toda a perfeição possivel; e que depois de a ver tão viciada na primeira, se contentasse na segunda apenas com substituir uma ou outra palavra, e corrigir leves faltas, deixando outras de tão grave consequencia, como em seu lugar veremos. Mas, ou fosse que o poeta vendesse ou désse o seu manuscripto, ou que o desgôsto em que vivia lhe fizesse até desprezar a fama posthuma, o certo he que, por falta de cuidado na revisão das provas, sahio a sua obra tão estragada e corrupta nas primeiras edições. E tantas forão as que sobre estas se fizerão dentro e fóra do reino, que affirma Faria e Sousa, escriptor digno de toda a fe, e diligente in

vestigador das cousas do poeta, que, sommando as de que pôde alcançar notícia até ao anno de 1639 em que escrevia, achára que a cada tres annos vinha a corresponder uma edição. Quasi com igual intervallo tem ellas continuado até hoje. Porém desgraçadamente, se exceptuarmos a que em Lisboa se fez na officina de Pedro Crasbeek em 1609 por Domingos Fernandes, dedicada a Dom Rodrigo da Cunha, e a que em Madrid nos deo o mesmo Faria em 1639, acompanhada dos seus mui estimaveis commentos; nas quaes alguns erros se emendárão; todas as mais não tem servido senão de perpetuar vicios antigos e introduzir outros novos, com grave detrimento da reputação e fama de tão egregio escriptor. Poisque tendo o seu poema sido vertido em todas as lingoas cultas da Europa com todas essas imperfeições, se lançárão á conta do poeta as faltas dos editores. Mas tal he o merecimento desta producção divina, que com todas essas máculas, e não obstante as flores da poesia murcharem entre as mãos do traductor, se aprecia justamente a obra, e se rendem a seu autor os cultos de admiração e respeito devidos aos grandes genios.

Mas de todos os editores nenhum, em nossa opinião, fez maior injúria ao nosso poeta, que Dom Jose Maria de Sousa. Na magnifica edição que este Snr. mandou fazer em Paris, na typographia de

Fermino Didot para ornar as principaes bibliothecas da Europa e brindar os seus amigos, não sabemos nós dizer, se mais para admirar sejão os prodigios do buril e a delicadeza e perfeição do typo, se para lastimar os despiedados estragos que o illustre editor fez no texto. Admirando, mas não entendendo a Camões, e deixando-se levar da sua cega preoccupação a favor da primeira edição, não so reproduzio os mais dos erros, que na segunda se havião emendado, mas até para accommodar o texto á sua absurda intelligencia, o desfigurou em alguns lugares com monstruosos e deslocados parenthesis, rejeitando a verdadeira lição que n'outros, evidentemente corruptos, se havia restituido: e isto sem dar outra razão, que a de que assim se lia nessa primeira edição, que elle contra o voto dos que o tem nesta materia, reputava pela mais correcta, por isso que indubitavelmente havia sido feita sôbre o manuscripto do poeta: como se os compositores não podessem alterar o que estava escripto, ou como se taes descuidos, e tão manifestos vicios de penna no proprio manuscripto se encontrassem, ahi mesmo se não devessem corrigir.

Nós damos os devidos louvores ao Snr. Sousa, que sem dúvida se fez credor da gratidão e estima de todos os Portuguezes em haver consagrado á memória do immortal cantor da nossa passada glória tão pomposo monumento. Mas, fallando das edições

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