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que deste poema se tem feito, nem podiamos deixar de fazer menção da sua, visto ser a mais notavel, nem depois de a mencionarmos dissimular seus defeitos, quando delles tão grave damno resulta á gloria do poeta que pretendemos revindicar: mormente quando, além dessa esplendida edição, consentio o dito Snr. se fizesse outra mais ordinaria para se vender ao público, propagando assim mais largamente os seus erros.

Quando, por morte dos grandes escriptores, passão as suas obras a ser propriedade pública, aos litteratos, como guardas naturaes e sentinellas que ficão sendo desses thesouros nacionaes, pertence o vigiar que mão profana os não contamine e deslustre, e restitui-los á sua primitiva pureza, quando se achem corrompidos. Por isso, ainda que na republica das Lettras nenhum vulto fazemos, comtudo, vendo assim desfigurado o maior brazão da nossa litteratura e gloria nacional, e que os a quem mais tocava acudir pola honra do poeta e da nação, se descuidavão; ja em 1826, estando então em Paris, na mesma typographia de Didot haviamos dado princípio a uma edição das obras completas de Camões; mas, como por impedimentos que occorrêrão, sendo o principal havermos outra vez sido chamados ao serviço da Nação, fossemos obrigados a abrir mão da empresa; agora que a fortuna nos consente algum repouso, e a amizade nos proporciona os meios necessarios, vamos pôr em prática o que ha tanto desejavamos.

Como porém nenhum capricho ou vaidade nos move a emprehender esta edição, não será ella rica, mas decente, que possa ter lugar em qualquer bibliotheca, commoda, que possa chegar ás mãos de todos, e sôbre tudo expurgada e limpa de erros; que nisto, e não em gravuras e outros adornos vãos, consiste o merecimento de uma edição. Para o que, rejeitando a primeira de 1572, preferida pelo Snr. Sousa, adoptaremos a segunda do mesmo anno, como menos viciosa. Mas, seguindo o exemplo de Lipsio, Gronovio, Drakenborch e outros homens doutos, que expurgando os antigos classicos dos vicios dos amanuenses editores, nos derão a verdadeira lição de Livio, Tacito e outros autores, faremos nos lugares corruptos aquellas necessarias emendas, que um longo e aturado estudo sobre uma obra, que desde nossos primeiros annos tem feito as nossas delicias, nos autoriza a fazer: as quaes serão por nós justificadas com solidas e evidentes razões tiradas do mesmo texto. E confiamos na fôrça da verdade, que por todo o leitor intelligente sejão recebidas e tidas como verdadeira e genuina lição.

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Agora, expostas as causas que nos movêrão a emprehender este trabalho, e o fim que nos propuzemos, razão parece dizermos tambem alguma cousa do merecimento da obra. E pois, concordando todos sôbre as suas grandes e inimitaveis bellezas, parece que alguns duvidão da sua regularidade, nos esforçaremos

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principalmente em fazer ver que neste poema se achão rigorosamente guardadas todas as regras e preceitos, bebidos por Homero no profundo estudo da natureza, e por Aristoteles estabelecidos depois em theoria.

He o poema Heroico, ou Epopeia (segundo a doutrina deste autor) a imitação de uma acção illustre, narrada em verso hendecasilabo para com a admiração e deleite excitar os homens, e com especialidade os principes á prática das grandes virtudes. acção ha de ser

A

Uma e simples, isto he, de um só heroe, e que se não possa dividir em outras acções.

Illustre, assim pela clareza do heroe, como por seu proprio esplendor.

Perfeita, que nada falte para o seu complemento, nem se lhe possa acrescentar.

De certa grandeza ou vulto, isto he, nem tão extensa que se não possa alcançar com a memoria, nem tão curta que se não possão enxergar as partes de que se compõe. Porque (para nos servirmos do mesmo exemplo de Aristoteles) se tomarmos para objecto da nossa observação um animal de dez mil estadios de comprimento, um só de seus membros nos encherá toda a vista de sorte, que não poderemos fazer ideia do todo; e se tomarmos um mosquito, não poderemos distinguir suas partes e feições com a agudeza dos olhos.

A epopeia consta de cinco partes, a saber, acção, fabula, costumes, sentença, e dicção.

A acção he a materia do poema: a fabula, a sua contextura e fórma; e consta de partes ou essenciaes, como são exordio, nexo, e solução, ou não essenciaes; como são os episodios.

No exordio se contem a proposição da acção, a invocação, e a dedicatoria, se a ha.

Nexo he o encadeamento dos successos desde aquella parte da acção, donde o poeta começa a sua narração, até ao ponto em que a empresa principia a pender para a felicidade ou infelicidade.

Solução, he tudo o mais que se segue desde esse ponto até ao fim da acção.

Por costumes se entendem os caracteres das diversas personagens que no poema figurão.

Por sentença a conveniencia dos pensamentos. Dicção, he a escolha e collocação das palavras; e nella se comprehende o metro.

Uma e simples he a acção dos Lusiadas; e em ser grande e illustre se avantaja muito a quantas se tem tratado: porque a da Iliada he o incendio de Troia occasionado pelo roubo de ua mulher; a da Eneida a passagem de Eneas á Italia e a fundação da cidade de Lavinio; a da Hierusalem libertada o sepulcro de Christo recobrado pelos cavalleiros da

Cruzada; e a dos Lusiadas he a descoberta da India -
oriental, feita por Vasco da Gama, por mares nunca
dantes navegados, e a Fé de Christo levada aquellas
regiões remotas; acção muito mais illustre e de muito
mor proveito a todo o genero humano, ou se olhe
pelo lado religioso, ou pelo commercial e politico;
e tanto mais gloriosa aos Portuguezes, quanto sem
o astrolabio por elles inventado e a bussola applicada
á navegação se tornava uma tal empresa absolutamente
impossivel. Além de que, da ruina de Troia nenhum
bem se seguio á humanidade; a vinda de Eneas á
Italia só podia interessar os Romanos, que delle qui-
zerão deduzir a origem do fundador da sua cidade
e imperio; e esse mesmo imperio acabou sem delle
nos ficar mais que a memória; e o sepulcro de Christo
tornou a cahir em poder dos barbaros Mahometanos,
como necessariamente havia de succeder, porque para
se manter e conservar seria mister ou exterminar de
todo os sectarios de Mafoma, ou consumir toda a
Christandade em o guardar e defender.
Mas as
vantagens, que a todo o genero humano resultárão
da descoberta da India, e da sciencia da navegação
estabelecida e levada pelos Portuguezes á sua última
perfeição, existem e existirão eternamente, porque não
ha fòrça humana, que as possa destruir.

Mas se a acção em si mesma he grande e maravilhosa, certo que o não he menos o engenho e arte

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