Da qual (1) também amizades mais brandas que cera (2) se acendiam em ódios que disparavam lume, que me deitava mais pingos na fama que nos couros de um leitão (3). Então ajuntou-se a isto acharem-me sempre na pele a virtude de Aquiles, que não podia ser cortado senão pelas solas dos pés; as quais, de mas não verem nunca, me fêz ver as de muitos (4), e não enjeitar conversações da mesma im (1) A oração iniciada acima com porque ficou, como se vê, interrompida por anacoluto. E êste da qual também não podemos ligá-lo de modo regular, e gramaticalmente satisfatório, a nada do que no texto precede. - (2) Mais brandas que cera, porque de-pressa se fundiram, redundando em ódios. - (3) Note-se o intrometimento de que, repetido quatro vezes em duas linhas. Repare-se também que não é o lume do ódio dos rivais de Camões, mas o que acendem os chamuscadores de porcos, que podia deitar mais ou menos pingos nos couros de um leitão.. Defeitos de forma e ilogismos de expressão são estes, que o Poeta fàcilmente haveria evitado, se não estivesse escrevendo, como se vê, ao correr da pêna. - (4) Há aqui outro anacoluto, agravado talvez por má cópia. Em vez de as quais, de mas não verem nunca, o que o sentido e a lógica do discurso pediam era o não m'as terem visto nunca, ou coisa parecida. As quais... mẹ sês também se não sustenta gramaticalmente, pressão (1), a quem fracos punham mau nome, vingando com a língua o que não podiam com o braço. Em-fim, senhor, eu não sei com que me pague saber tão bem fugir a quantos laços nessa terra me armavam os acontecimentos, como com me vir para esta, onde vivo mais venerado que os touros da Merceana (2), e mais quieto que a cela de um frade prègador. Da terra vos sei dizer que é mãe de vilões ruins e madrasta de homens honrados (3); porque os que se cá lançam a buscar dinheiro, sempre se sustentam sôbre água como bexigas (4); mas os que (1) Conversações da mesma impressão equivale a intimidades com desordeiros. Mesma não se liga a nada anterior que tivesse passado da mente de Camões para o papel em que escrevia. -Saindo das misérias da gramática para a essência do assunto, diremos que éste passo, em que o Poeta se gaba de nunca ter fugido e de haver visto as solas de muitos, é dos mais conhecidos e citados da carta. - (2) Porque eram venerados os touros da Merceana? Talvez por serem bravos e muito apreciados para o toureio. Storck (Sämmt. Ged., I, 404) acha disparatada a aproximação do touro e da cela de frade; mas o chiste estará talvez nesse mesmo disparate.- (3) Frase muito citada pela actual oposição ao governo de el-rei D. Joao III. - (4) Por serem leves de escrúpulos, como os aventureiros de todos os tempos. sua opinião deita à las armas Mouriscote (1), como maré corpos mortos à praia, sabei que antes que amadureçam se secam (2). Já estes (3) que tomavam esta opinião de valentes às costas, crede que nunca, Riberas del Duero arriba e quando vem ao efeito da obra (5), salvam-se com dizer que se não podem fa (1) Opinião pode significar neste caso pendor ou fidalguia, e a frase inteira refere-se aos que, por tal opinião, preferiam a carreira das armas ao comércio.- (2) É evidente que os guerreiros, naquele tempo ao menos, duravam menos que os chatins. Com razão chamava o conde de Alcoutim à India sepultura de homens nobres. - (8) = quanto a estes. Refere-se aos falsos valentes, que o Poeta satirizou também nos Disparates da India (cf. Camões Lirico, 1.o vol., p. 227). - (4) Tradução: (crêde que nunca) pelas margens do Douro acima, cavalgaram Zamoranos que trocassem entre si tantas farroncas 'de soberba (como estes falsos valentes de que o Poeta vinha falando). Estes versos, assim como o anterior (à las armas, Mouriscote) e os dois seguintes (Su comer, etc) são tirados de rimances espanhóis, que andavam em grande voga na Península. - (5) = quando chega o momento de bater. zer tamanhas duas cousas, como é «pro<meter>» e «dar.>>> Informado disto, veio a esta terra João Toscano, que, como se achava em algum magusto de rufiões, verdadeiramente que ali era: Su comer las carnes crudas, Calisto de Siqueira se veio cá mais humanamente (2), porque assim o prometeu em uma tormenta grande em que se viu. Mas um Manoel Serrão, que, sicut et nos, manqueja de um ôlho (3), se tem cá provado arrazoadamente, porque fui tomado por juiz de certas palavras, de que êle fêz desdizer a um soldado, o qual pela postura de sua pessoa era cá tido em boa conta (4). (1) Tradução livre: a sua comida era a carne do adversário e só bebia sangue vivo. - (2) = portou-se cá com mais humanidade ou cordura. - (3) Sicut et nos não parece querer dizer, como lembrou Storck (Sämmt. Ged., I, 405) que o destinatário da carta fosse também cego dum ôlho. O plural latino nos pode referir-se à 1.a pess. do sing., como o correspondente português. - (4) Parece significar tudo isto que o soldado era tido em conta de esforçado, mas que o Serrão o fêz calar, ou retratar-se, e Camões interveio no conflito como árbitro. Se das damas da terra quereis novas, as quais são obrigatórias a uma carta, como marinheiros à festa de Sam Frei Pero Gonçalves (1), sabei que as Portuguesas tôdas caem de maduras, que não há cabo que tenha os pontos (2), se The quiserem lançar pedaço (3). Pois ¿as que a terra dá? além de serem de rala (4), fazei-me mercê que lhes faleis (5) alguns amores de Petrarca ou de Boscão; respondem-vos uma linguagem meada de (1) Também chamado San Telmo em Biscaia e Guipúscoa, e Corpo Santo em Portugal. Nasceu em Placência (Espanha), foi sepultado em Tui, e canonizado sem 1254. Mareante portugueses, em especial os pescadores, tinham muita devoção com êste Santo, a cuja intercessão recorriam nos naufrágios e outros perigos do mar. - (2) A variedade de significações das palavras cabo e ponto torna difícil a interpretação desta frase; e a dificuldade aumenta por não sabermos se o prónome the, aqui duas vezes empregado, deve entender-se por lhes, como tanta vez ocorre nos Quinhentistas. - (3) = se lhes quiserem deitar remendo? Sendo assim, o sentido desta oração e da anterior será: ainda que se lhes deite um remendo, cosendo-o com um cabo, os pontos da costura não poderão sustentar êste conserto. - (4) = escuras, ou grosseiras? O pão de rala (ralão, rolão), é feito de farinha grosseiramente moída. - (5) Hoje diríamos: ide lá falar-lhes, qu vá alguém, vá a gente falar-lhes, |