ervilhaca (1), que trava na garganta do entendimento, a qual vos lança água na fervura da mor quentura do mundo. Ora julgai, senhor, o que sentirá um estômago costumado a resistir às falsidades de um rostinho de tauxia (2) de uma dama lisbonense, que chia como pucarinho novo com água (3), vendo-se agora entre esta carne de salé (4), que nenhum amor dá de si. ¡Como não chorará as memórias de in illo tempore ! Por amor de mim (5), que às mulheres dessa terra digais de minha parte que, se querem absolutamente ter alçada com baraço e pregão (6), que não receiem seis (1) Morais define hervilhaca como herva e grão mau que nasce nas searas, e interpreta êste mesmo passo de Camões, dizendo: linguagem cheia de barbarismos, como falava o vulgo na India. (2) = branco e rosado. Tauxia é o mesmo que embutido, marchete, marchetaria. Camões emprega por vezes os termos tauxia, marchetado, etc., para significar as côres belas e suaves da pele feminina, ou as da manha. - (3) Maneira de definir a frescura da pele rosada e alva, talvez quando se beija. - (4) = carne salgada, por oposição à carne fresca e viçosa dos rostinhos de Lisboa. Salé é o termo francês, aportuguesado na pronúncia. - (5) Subentenda-se dos peço. - (6) = ter jurisdição para condenar ás penas máximas, e, portanto, brilhar, distinguir-se, assumir a maior importância, fazer grande figura. meses de má vida por esse mar (1), que eu as espero com procissão e pálio, revestido em pontifical (2), aonde estoutras senhoras lhes irão entregar as chaves da cidade (3) e reconhecerão tôda a obediência, a que por sua muito idade são já obrigadas. Por agora, não mais (4), senão que êste soneto que aqui vai, que fiz à morte de D. António de Noronha (5), vos mando em sinal de quanto dela me pesou. (1) De seis meses era a duração média das viagens da India. - (2) Como o bispo na sua Sé, com a capa (pontifical). - (3) Em sinal de preito ou submissão, como a autoridade burguesa fazia em sinal de homenagem ao Rei, ou a algum vencedor em batalha ou assédio. - (4) Castelhanismo; tradução literal de no más. - (5) Morreu com 17 anos em 1553, combatendo contra os mouros de Tetuão. O soneto é o que começa Em flor vos arrancou, de então crescida, n.o 6 da edição de T. Braga, n.o 12 da de Juromenha. Aí promete Camões celebrar o moço herói em triste e longo canto, anunciando assim a Égloga a que logo adiante se refere nesta carta. A Égloga lamenta igualmente a morte do príncipe real D. João, pai de D. Sebastião, falecido também com 17 anos, ou ainda menos, embora de morte natural. No torneio de Xabregas, onde foi armado cavaleiro, justou D. João com D. António de Noronha. Esta circunstância, adida à semelhança das idades dos dois malogrados moços, determinou certamente Camões a reüni-los na mesma celebração poética. Uma égloga fiz sobre a mesma matéria, a qual também trata alguma cousa da morte do Príncipe, que me parece a melhor de quantas fiz. Também vo-la mandara para a mostrardes lá a Miguel Dias, que, pela muita amizade de D. António, folgaria de a ver; mas a ocupação de escrever muitas cartas para o Reino me não deu lugar. Também lá (1) escrevo a Luís Lemos, em resposta doutra que vi sua. Se lha não derem, saiba que é a culpa da viagem, na qual tudo se perde. Vale (2). (1) = para ai.. - (2) = adeus, em latim. Mais literalmente: saúde (tende saúde). Fecho habitual das cartas, na língua-mâe. U Uma vossa me deram (CARTA PUBLICADA EM 1904) MA vossa (1) me deram, a qual, pelo descostume, me pôs em tamanho espanto, como contentamento em saber novas de quem tanto as desejava; mas, nem com esta vos forrareis do esquecimento que de mim tivestes, em em não escreverdes antes de vos irdes. Entre algumas novas que mandastes, vi que me gabáveis a vida rústica, como são águas claras, árvores altas, sombrias fontes que correm, e outras «saudades» de Bernardim Ribeiro, quae vitam faciunt beatam (2). Não vos nego a enveja que dela vos tenho, nem o pouco conhecimento (3) que dela tendes, pois me dizeis que vos enfada já. (1) V. acima, nota 1 a Carta Desejei tanto uma vossa. = (2) = que santiiçam a vida. - (3) = reconhecimento, gratidão. A trôco destas novas vos darei outras desta terra, tão contrárias dessas como esta vos dirá (1). Primeiramente, digo que cá vivem os homens na mão (2) do mundo, o que não fazem os de lá (3), porque, se lá tendes conta (4) com visitar fazenda (5), enxertar árvores, dispor cravos, ir ver se a lagarta rói a vinha, rir das rústicas palavras dos pastores, ouvir seus não fingidos amores - os de cá hão-de ter conta com exercitar suas vidas, de maneira que floreçam suas obras, por (6) que a lagarta das más-línguas não roa a vinha dos vidas alheias; (1) Note-se a repetição desagradável do demonstrativo (destas, desta, dessas, esta, num período tão curto. - (2) = na dependência. - (8) Hoje empregar-se-ia neste caso ai, em vez de lá. - (4) Ter conta com é quasi sempre substituído na língua actual por tomar conta de.- (5) Parece-nos qua visitar terá aqui o sentido de vigiar, inspeccionar, como nas visitações dos prelados aos seus súbditos, e nas dos físicos aos boticários, visitados para se ver se tinham nas boticas os remédios indispensáveis. Fazenda teria ainda no tempo de Camões o significado de labutação, trabalho, mais vizinho da origem (faser; o que tem de se fazer). «Visitar fazenda» deverá pois entender-se como vigiar o serviço dos trabalhadores. - (6) = para. |