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Que encendem alma e engenho,
E (1) já me entraram o muro
Do livre-arbítrio que tenho;

60.

Estes, que tão furiosos
Gritando vêm, a escalar-me (2),
Maus espíritos danosos,
Que querem, como forçosos,
Do alicerce derribar-me;

61.

Derribai-os, fiquem sós,
De fôrças fracos, imbeles,
Porque não podemos nós
Nem com êles ir a vós,
Nem sem vós tirar-nos dêles.

62.

Não basta minha fraqueza

Para me dar defensão,

295

300

305

(1) O texto diz que.

(2) Continua até verso 310 a imagem do muro do livre-arbitrio, muralha da fortaleza da alma, que os maus espíritos veem escalar.

VOL. III

6

Se vós, santo Capitão,
Nesta minha Fortaleza
Não puserdes guarnição.

63.

310

E tu, ó carne, que encantas, (1)

Filha de Babel tão feia,

Tôda de miséria cheia,
Que mil vezes te levantas

Contra quem te senhoreia,

315

64.

Beato só pode ser
Quem, com a ajuda celeste,
Contra ti prevalecer
E te vier a fazer

O mal que tu lhe fizeste;

65.

Quem, com disciplina crua,
Se fere mais que uma vez;
Cuja alma, de vícios nua,

320

(1) Nesta estrofe e nas duas seguintes professa o Poeta o repúdio da Carne e faz o elogio da Penitência,

Faz nódoas na carne sua
Que já a carne n'alma fêz.

66.

E beato quem tomar

Seus pensamentos recentes (1)
E em nascendo os afogar,

Por não virem a parar

Em vícios graves e urgentes;

67.

Quem com êles logo der
Na pedra do furor santo
E, batendo, os desfizer
Na Pedra, que veio a ser
Em-fim cabeça do canto (2);

325

330

335

(1) O sentido de recentes (recém-nascidos) está explicado no verso imediato pela expressão em (êles) nascendo: matar à nascença a tentação do pecado, para que não chegue a crescer e a dominar-nos.

(2) pedra angular. Refere-se à religião, à Igreja (et super hanc petram aedificabo...). Continua, e acaba aqui, o paralelismo com o Salmo 136, que fecha com a imprecação de Israel: Beatus, qui tenebit, & allidet parvulos tuos ad petram.

68.

Quem logo, quando imagina
Nos vícios da carne má,
Os pensamentos declina (1)
Aquela Carne divina
Que na Cruz esteve já.

69.

Quem do vil contentamento
Cá dêste mundo visível,

Quanto ao homem fôr possível,
Passar logo o entendimento
Para o mundo inteligível (2).

70.

340

345

Ali achará alegria
Em tudo perfeita, e cheia

De tão suave harmonia,
Que nem por pouca recreia (3),

Nem por sobeja enfastia.

350

(1)= inclina, desvia.
(2) = transcendente, ideal.

(3) «Não terá o poeta escrito escasseia?» pergunta o dr. J. M. Rodrigues (Camões e a Inf., pág. 169, nota). Recreia pode todavia defender-se por antitese com o conceito expresso no aforismo varia71.

Ali verá tão profundo
Mistério na suma Alteza,
Que, vencida a natureza,
Os mores faustos do mundo
Julgue por maior baixeza.

72.

¡Ó tu, divino aposento (1),
Minha pátria singular!
Se só com te imaginar
Tanto sobe o entendimento,
¿Que fará se em ti se achar?

73.

¡Ditoso quem se partir
Para ti, Terra excelente,
Tão justo e tão penitente,
Que depois de a ti subir,
Lá descanse eternamente!

355

360

365

tio delectat. A harmonia celestial não precisa de ser pouca para recrear, o que equivale a dizer, como no verso seguinte, que não enfastia por sobeja. Tal como está, o texto responde a um argumento racionalista, que supõe que a alegria immutável deixa de ser alegre, por falta de contraste. (1) = refúgio.

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