PREGADO NA MATRIZ DO MARANHÃO NO ANNO DE 1656 OBSERVAÇÃO DO COMPILADOR -O estylo d'este sermão é o de uma practica muito familiar, como se costuma nas missões; e para isso é que póde servir de modelo. Alii autem caedebant ramos de arbó- S. MATH. 21. da quaresma do templo de Jerusalem. Como Deus não se agrada de affectos subitos, senão de Tres estancias corações preparados, maravilhosas são as disposições, cada similhantes ás vez maiores e mais estreitas com que a Egreja catholica nossa mãe, governada pelo Espirito Sancto, de muito longe nos começou a preparar e foi preparando sempre para que chegassemos dignamente a este dia e entrassemos como convem n'esta sagrada semana. Para chegar ao Sancta Sanctorum que era o los gar mais sagrado. do templo de Jerusalem, traçou Deus a entrada com tal artificio, que primeiro se passasse por tres estancias tão mysteriosas no sitio como na medida; porque quanto eram mais interiores tanto se estreitavam mais. A primeira e a segunda se chamavam atrios e a terceira propriamente templo. Por esses como degraus de reverencia e culto e com todas essas disposições de sempre maior recolhimento e aperto se chegava finalmente ao Sancta Sanctorum. E com as mesmas quer e, ordenou a Egreja que entrassemos nós á semana sancta; porque assim como o Sancta Sanctorum era o logar mais sagrado do templo, assim a semana sancta é o tempo mais sagra. do da penitencia quaresmal». tancias quaresmaes. As tres estancias que o precedem e já passamos, tanto mais Ordem das esestreitas quanto mais interiores, foram: a primeira desde a septuagesima até à quaresma: a segunda do principio, da qua Varios nomes dados á Semana Sancta. sanctificar. resma até à dominga proxima, chamada de Paixão: a terceira da mesma dominga de Paixão até o dia presente. Na entrada da septuagessima se começaram a enluctar os altares e cessaram no canto ecclesiastico as alleluias; sendo essa ceremonia exterior o primeiro preludio ou reclamo da penitencia para que não dissolutos mas compungidos entrassemos no tempo sancto da quaresma. Começou a quaresma com a memoria da cinza e do pó que somos e com o jejum universal: continuou com tanta frequencia de sermões, com tantas procissões de modestia, compuncção e piedade christã, com tantas mortificações secretas e publicas e com tanta effusão violenta do proprio sangue; e não se dando por satisfeita com todas essas demonstrações a Egreja, para maior representação de sua justa dôr e tristeza na dominga proximamente passada correu todas as cortinas aos altares; e até as imagens sacrosanctas de Christo crucificado nos encobriu e escondeu com aquelle véu negro para que eclipsado assim e escurecido o divino sol de nossas almas chegassemos com mais assombro e sancto horror aos dias em que somos entrados. Os antigos, como se lê em S. Bernardo, chamavam a esta semana a semana penosa, pelos tormentos e penas que Christo Como se deve nosso redemptor nella padeceu e pelo sentimento e dôr com que nós os devemos corresponder e acompanhar. A Egreja universal lhe chama a semana maior, porque n'ella se consummaram os maiores mysterios da nossa redempção, os maiores excessos do amor e misericordia divina e o maior e mais tremendo exemplo de sua justiça. Nós em significação de todas estas cousas junctas chamamos vulgarmente á mesma semana, a semana sancta: mas não sei se as nossas acções e exercicios n'ella respondem ás obrigações de tão sagrado nome. Ora eu tão escandalizado do que algumas vezes acontece, como zeloso do que é bem que se veja e reconheça em todos n'estes sanctos dias, o assumpto que somente vos determino prégar hoje é este que deve fazer todo o christão para que a semana sancta seja sancta? A materia nem póde ser mais pia, nem mais wil, nem mais propria da occasião, se aquelle Senhor que hoje chorou sobre a cidade de Jerusalem pozer seus divinos olhos na nossa e nos assistir com sua graça. Peçamol-a por intercessão da Virgem Senhora com tão devoto affecto dos nossos corações que a mereçamos alcançar: Ave Maria. Os dias da quaresma são II. Sancto Agostinho, S. Basilio e S. Pedro Chrysologo compa40 dias de dilu- ram os quarenta dias da quaresma aos quarenta dias do diluvio de graças. vio universal. N'aquelle diluvio esteve Deus quarenta dias chovendo castigos; n'este está outros quarenta dias chovendo mi não acontece o que se sericordia. Mas somos os homens tão protervos, que nem por bem nem por mal póde Deus comnosco: os castigos não nos emendam, as misericordias não nos abrandam. Barro emfim. Assim como o barro se endurece com os raios do sol, assim nós com os favores do céu não nos abrandamos, antes nos endurecemos mais. O mesmo que lhes succedeu aquelles antigos homens no primeiro diluvio, nos acontece a nós n'este segundo. Começou a chover o diluvio de Noé: alagaram-se na pri- N'este diluvio meira semana os valles e os quartos baixos dos edificios; subiram-se os homens aos quartos altos. Choveu a segunda se- viu no de Noë. mana, venceratn as aguas os quartos altos; subiram-se aos telhados. Choveu a terceira semana, sobrepujou o diluviu os telhados; subiram-se ás torres. Choveu a quarta semana, ficaram debaixo das aguas as torres e as ameias mais altas: subiram-se aos montes. Choveu a quinta semana, ficaram tambem afogados os montes. Subiram-se finalmente ás arvores; e assim estavam suspensos e pregados nos ramos. Postos n'este estado os homens já não tinham para onde subir e não lhes restava mais que uma de duas: où nadar e acolher-se à arca ou deixar-se afogar e perecer no diluvio. Oh se nos vissemos bem n'este grande espelho! E quantos de nós estamos hoje no mesmo estado! Desde o principio da quaresma começou Deus a querer-nos conquistar as almas e nós sempre a retirar e a fugir de Deus de semana em semana. Passou a primeira semana da quaresma, guardamo-nos para a segunda: passou a segunda, deixamo-nos para a terceira: passou a terceira, esperamos para a quarta: passou a quarta, dilatamo-nos para a quinta : passou a quinta, appellamos para a sexta. Já estamos na sexta e na ultima semana d'este diluvio espiritual; já estamos em dia de Ramos; e chegados a este dia e a esta semana precisa em que não ha já para onde retirar; que é o que nos resta? Ou fogar e perecer, ou resolver e nadar para a arca. Ös d'aquell'outro diluvio não podiam nadar, nem salvar-se marca de Noé, uns porque estavam muito longe, outros por que não sabiam d'ella, e todos porque a arca não tinha mais qu uma porta e essa estava fechada por fóra; e tinha Deus levdo as chaves, como diz o Texto. Cá no nosso diluvio não é asim. O Noé é Christo Salvador e Reparador do mundo: e a ara em que salvou o genero humano é a sua cruz. Assim The cama a Egreja no hymno corrente d'este tempo: Atque portun praeparare arca mundo naufrago. O antigo Noé não tinha pota por onde recolher os que se quizessem valer da arca; ma o nosso Noé divino está com cinco portas abertas e abertas m si mesmo para recolher e salvar todos os que se Neste diluvio cada um póde salvar-se quando quizer. Ps. 68 O livro do anjo, o do parocho da quaresma. quizerem valer d'elle e da sua cruz. Oh que differente diluvio é este d'aquelle! n'aquelle morreram todos os homens e salvou-se só Noé com a sua familia» n'este morreu e afogou-se só o divino Noé: Veni in altitudinem maris et tempestas demersit me, para que todos os homens se salvem. Os que pereceram n'aquelle diluvio, são os que não se quizeram persuadir e se foram dilatando até que não tiveram remedio. E será bem que nós chegados a este dia, ainda nos dilatemos mais e pereçamos como elles? Perecer não, christãos, pelo que nos merece o amor de Christo e suas sanctissimas chagas. Aproveitemo-nos ao menos d'estes poucos dias da semana sancta, já que dos de toda a quaresma nos não soubemos aproveitar. Diz S. Basilio Magno que os anjos de cada cidade desde o e o do evange- principio da quaresma vão escrevendo em um livro os que jelho no tempo juam e os que não jejuam. Assim como os parochos no mesmo S. Basilio. tempo tomam a rol todos os freguezes para lhes pedirem conta da confissão e communhão, assim o fazem os anjos para a tomarem do jejum. Mas além d'estes dous livros ainda ha outro terceiro, de que muito mais difficultosamente nos havemos de desobrigar.. E que livro é este? E' o que vêdes n'aquelle altar. O primeiro livro é o do parocho, o segundo o do anjo, o terceiro o de Christo. Em todos os dias da quaresma nos manda Christo lêr. um novo evangelho (o que não se faz nos outros dias do anno); e por esse diario da doutrina christă havemos de ser tambem examinados todos os que nos chamamos christãos. Como estará no tado e cotado Oh! se aqui apparecera agora esse livro, como está notado o ultimo livro. e cotado na mente divina! Se se abrira esse livro deante de todos e se começara a lêr publicamente o que cada um fez ou deixou de fazer n'esta quaresma; que vergonha havia de ser e que confusão a de muitos, quando se fossem confrontando dia por dia a forma dos evangelhos e a deformidade da vida! Vei um primeiro dia da quaresma, veio uma quarta-feira de cinza pôz-nos a Egreja deante dos olhos não só a memoria, senão a mesma morte; e quantos houve que mudassem a vida? Vejase o livro n'esse dia. Passou o dia e ninguem se achou escrito n'elle. Continuamos na mesma vida, como se nunca houverade acabar e tão esquecidos da conta, como se Deus nol-a não ouvera de pedir. Chegou uma primeira sexta-feira da quarema: leu-se aquelle admiravel evangelho do amor dos inimigs; e quantos houve que deixassem os odios, quantos que s arrependessem dos propositos da vingança, quantos que sereconciliassem e pedissem perdão? Passou o dia e os ocos não passaram ainda fulano se não corre com fulano; aind se não fallam; ainda se não saúdam; ainda inimigos, ainda escandalosos, ainda não christãos, como d'antes. Chegou o domingo das tentações: vimos como Christo nol-as ensinou a vencer com lanto despego sendo tão naturaes, e com tanta resolução sendo tão. fortes; mas quantas victorias alcançámos depois d'isso contra o demonio? O demonio sempre vencedor e vencedor sem batalha ; porque onde o peccar é habito, não ha resistencia. Tantas vezes vencidos quantas tentados, e, o que peior é, antes de tentados, vencidos; não sendo já necessario ao demonio tentar a muitos, porque elles são os que buscam as tentações e os peiores tentadores. Chegou o segundo domingo da gloria: vimos transfigurado a Christo e arrebatado a S. Pedro no monte Thabor; e quem houve que por saudades do céu se despegasse um pouco da terra? Tambem em tal dia folha em branco. Tão apegados á terra, tão cegos, tão enterrados e tão toupeiras n'ella como se o céu não fora creado para nós, nem nós para elle; e como se o Filho de Deus o não comprara para nós com seu proprio sangue! Chegou o terceiro domingo do demonio mudo; e quantos houve que aprendessem a saber calar os peccados alheios e a confessar os proprios? Ainda aquelle miseravel, ainda aquella mesquinha, que traz encuberto o peccado ha tanto tempo, se não deliberou ao confessar, accrescentando em cada confissão fingida um novo sacrilegio, sem reparar que é justo juizo de Deus, provado com muitos exemplos, que falte a falla e a confissão na morte, a quem o não faz como deve na vida. Chegou finalmente uma sexta feira de Lazaro resuscitado de quatro dias; e que moço ou velho houve que à sua imitação se levantasse da sepultura, em que, podres de seus vicios, jazem ha tantos mezes e póde ser que tantos annos? Chegaram os dias da conversão da Samaritana e da Magdalena, uma de baixa condição e outra nobre e senhora, e que mulher houve perdida ou arriscada a se perder que reparasse na sua mesma perdição e abrisse os olhos á sua cegueira? Ainda continuam os mesmos pensamentos e maldictos cuidados, ainda as mesmas occasiões, ainda as mesmas torpezas, ainda os mesmos escanda los e ainda continúa e arde o mesmo fogo para se continuar no do inferno. se deve tomar Sancta. Eis aqui, christãos, como muitos de vós tendes passado a Resolução que quaresma, perdendo tantos dias em que podereis abrir os olhos para a Semana e em que podereis entrar dentro em vós: cerrando sempre os ouvidos ás vozes do céu e fechando os corações ás inspirações divinas. Os dias que passaram já não podem tornar, nem teem remedio os que estão por vir d'aqui até quinta-feira (que é a ultima reserva das consciencias mais descuidadas) não são mais |