Pagina-afbeeldingen
PDF
ePub

SERMÃO SEXTO

XAVIER ASSEGURADOR NOS PERIGOS DO COMMERCIO

Posuit pedem suum dextrum super mare, sinistrum autem super terram.

APOC. X.

o commercio.

No segundo dia da creação do mundo, dos dous elementos A navegação e inferiores formou Deus com grande providencia um só globo. O elemento da agua cobria toda a terra, com que ella alagada não podia ser fecunda, nem o homem, afogado e sem respiração, poderia habital-a. Fez pois Deus que subindo (ou surgindo) um elemento, e descendo outro, se dividissem junctamente, e se abraçassem; e d'estas duas partes, uma solida e outra liquida, conservando cada uma a sua propria natureza, se compoz e inteirou este formoso globo: ao qual, servido e acompanhado dos outros elementos, chamamos mundo. As duas maiores e mais necessarias utilidades d'este providentissimo invento do Creador colheram depois de muitos annos os homens, e foram a navegação e o commercio; dous titulos que el-rei D. Manuel de Portugal, depois que dominou os mares e descobriu muitas terras não conhecidas, ajunctou aos de sua corôa, nomeando-se senhor da navegação e commercio da Ethiopia, Arabia, Persia, e da India, não fazendo ainda menção do Brazil, posto que já o navegavam as suas frotas, e as começavam a carregar docemente os seus commercios.

As utilidades d'estas duas artes ou industrias, que chamei grandes e necessarias, só as não conhecerá quem estiver fóra do mundo; porque, como a sua redondeza se extende ou revolve em tantas mil leguas, para poder unir as distancias de terras entre si tão apartadas e remotas, inventou a navegação

Suas

utilidades.

1

Confata-se
Plinio.

aquelles grandes vasos de madeira, a que com nome geral chamamos navios: os quaes são umas pontes moveis e ligeiras, que caminhando, e nós nellas, nos levam desde o porto d'onde le. vantaram as anchoras, a quaesquer outros, posto que remotissimos, onde outra vez dão fundo. E como as terras sotopostas a differentes climas, segundo as influencias varias do céu, assim como geram homens de diversas côres e linguas, assim produzem com a mesma diversidade infinitos generos de fructos e outras drogas, pois é certo que Non omnis fert omnia tellus; estas são as que o commercio leva e traz, commutando as naturaes com as peregrinas, e fazendo as mesmas peregrinas naturaes, com tanto augmento de estimação e preço em todas, quanto são mais remotos os fins do mundo, d'onde cada uma é levada ou trazida. Lá disse o poeta: Latum mutandis mercibus æquor aro. E é cousa verdadeiramente maravilhosa na união d'estas duas artes, que arando a navegação o mar com as prôas e com as quibas; d'aquellas mesmas arvores, que nos navios se levantam seccas e sem raizes, colhe o commercio todos os fructos que a terra produziu, e regou o céu, em todos os climas do mundo.

Plinio lança maldicções ao primeiro que semeou e cultivou o linho, por ser esta herva a que deu materia aos homens para levantarem vélas sobre vélas, maiores que os mesmos navios, com que dão novas azas e forças aos ventos, não bastando aos pobres navegantes haverem-se de subir os montes e descer os valles, que os ventos por si mesmos cavam e levantam nas ondas. Queixa-se de que nasça de tão pequena semente o que não deixa estar quieto o mundo nos logares que lhe deu a natureza, mas o traz continuamente como fóra de si, de uma parte para outra: Tam parvo semine nasci, quod orbem terrarum ultro citroque, portet. Não advertindo, ou não sabendo um homem tão sabio, que o fim para que foi fabricado o primeiro navio, foi para levar todo o mundo dentro em si ano diluvio». E sendo este o maior beneficio que d'elle recebeu o genero humano, quasi não é menor o segundo; pois estando o mundo dividido, não só em quatro partes, senão em tantas outras, em todas pelo commercio e navegação se pode ter e lograr todo. E se foi, não só licito, mas elegante modo de dizer, que Eneas nas suas galés levára Troia a Italia: Ilium in Italiam portans; porque não será egual e maior louvor dos outros vasos nauticos mais capazes, que com o uso das vélas, sem remos, não só levem a talia á Hispanha, estas duas provincias ás outras da Europa, mas a mesma Europa á mesma Africa, e a mesma Asia e America umas as outras ? Finalmente, conclui o mesmo Plinio, que a

mesma natureza em castigo e vingança d'esta injuria fez que o linho queime a terra onde nasce, e a faça esteril: Ut sentiamus nolente id fieri natura, urit agrum, deterioremque etiam terram facit. Enganando-se muito n'esta sentença o juizo de tão grande auctor, pois importa pouco que o linho faça estereis poucas geiras de terra, para facilitar e fazer fecundas todas as outras do mundo, as quaes por beneficio d'aquellas arvores, cujas folhas tecidas do linho assopra e incha o vento, todos os fructos que nascem e crescem só em alguns climas, dão ellas, e fazem proprios em si mesmas. E assim como a pintura mostra todo o mundo visivel em um pequeno mappa; assim a navegação e commercio, tudo o que nelle ha de bom, util e precioso, não pintado ou fingido, senão verdadeiro, o expoi e offerece venal em uma só praça cu feira. Assim o vemos nas de Amsterdam e Londres, nas de Genova e Veneza, nas de Lisboa e Sevilha, e outros famosos emporios e portos do mar, d'onde elles as penetram e communicam ás cidades e terras interiores, que não tiveram a ventura de ser maritimas.

piratas.

II.-Mas como n'este mundo não ha beneficio sem pensão nem Naufragios e bem tão isempto de todo o mal, que não tenha e padeça seu contrario; estas duas utilidades tão importantes á conservação, opulencia, e ainda á delicia do genero humano, ambas estão sujeitas a dous perigos tão grandes como ellas mesmas. A sagrada Escriptura não os quiz declarar, mas manda-nos que o perguntemos aos que navegam o mar, e que elles o digam: Qui navigant mare, enarrent pericula ejus. Ella os callou, porque não é necessaria fe para os crermos, basta a experiencia dos que cada dia os choram. Chama-lhe porém o texto sagrado, não perigo, senão perigos: Enarrent pericula ejus. E porquê? Porque assim como as utilidades são duas, a da navegação e a do commercio: assim os perigos que sempre a seguem, e de que muitas vezes não escapam, são tambem dous. O perigo da navegação é a furia do mar e das tempestades; o perigo do commercio é a cubica e violencia dos cossarios: mas tão poderosamente contrarios a uma e outra utilidade, que basta não escapar d'elles para que se percam ambas. De ambas considerou sancto Agostinho os perigos, quando disse: Mare procellis turbulentum, ubi homines cupiditatibus perversis et pravis facti sunt velut pisces se invicem devorantes.

seguros.

Comtudo, não só a dôr e experiencia dos proprios damnos, A invenção dos senão tambem a inspiração da Providencia divina ensinou aos homens outra industria com que anticipar o remedio dos mesmos perigos só no provavel temor e contingencia d'elles. E para que não dilatemos mais o fim a' que se encaminha este largo

VOLUME V

37

For ensinada

pelo

discurso, o remedio anticipado que digo, é o que em todos os grandes emporios ou praças mercantis se chama casa dos seguros. Contractam alli os interessados dar anticipada e gratuitamente uma parte do mesino cabedal que teem arriscado, e com esta parte, entregue antes, seguram de tal maneira o todo, que ainda que na tempestade faça naufragio o navio, ou o rendam e seja preza nas mãos dos cossarios, sempre o cabedal fique tão seguro nas do que o arriscou, como se o conservára em seu poder, e o não fiára das ondas e seus perigos. E atrevi-me a affirmar que foi esta traça inspirada da Providencia divina; porque mais de dous mil annos antes que o Oceano indomito soffresse sobre si o peso das grandes machinas que hoje sustenta, e se deixasse romper dos arados nauticos, já este notavel remedio ou reparo de seus perigos parece» estava receitado nas divinas lettras.

No capitulo onze do Ecclesiastes, diz assim o Espirito Sancto; em certo modo Mitte panem tuum super aquas, quia post multa tempora inveEcclesiastes. nies illum: Lançae o vosso pão sobre as aguas, porque depois de muitos tempos o achareis. E quem são estes que lançam o seu pão sobre as aguas? São os mercadores que embarcam a sua fazenda, e a lançam ao mar, para depois de muito tempo a recolberem com lucro. Neste sentido disse o mesmo Espirito Sancto de uma mulher varonil, como se fôra homem de negocio: Vidit quia bona est negotiatio ejus, e por isso, facta est quasi navis institoris, (id est mercatoris) de longe portans panem suum. Allude aos lavradores que semeiam sobre a terra regadia, e com muita propriedade; porque como estes são lavradores da terra, assim os mercadores são lavradores do mar. E para que se veja que o sentido proprio e natural é do mercador, e não do lavrador: o lavrador não colhe o fructo do que semeia, de longe, senão de perto e da mesma terra que piza com os pés; porém o mercador espera-o de longe de longe portans, como da India, e de outras partes muito remotas: 0 lavrador recolhe-o dentro em poucos mezes; o mercador depois de muitos tempos; isso é post tempora multa, porque talvez è necessario um anno para ir, e outro para negociar, e o terceiro para vir. Isto assim assentado: seguem-se immediatamente umas palavras nolaveis: Da partem septem, necnon et octo, quia ignroas quid futurum sit mali. Dae parte dos septe, e parte dos oito, porque não sabeis os males que podem succeder de futuro. Todos sabem que o numero de septe na escriptura significa muitos, e o numero de oito mais ainda. Estas palavras, pois, são tão difficultosas, e se atam tão mal com as antecedentes, que os interpretes lhes teem dado não só septe e oito, senão dezoito

sentidos differentes. O que eu tenho por proprio, natural e verdadeiro, fique ao juizo dos ouvintes. Agora digo que falla aqui o texto do contracto da asseguração, e do remedio anticipado e prudente com que, dando parte do cabedal que se embarca e se expoi aos perigos do mar, se segura o todo. O mesmo texto, e a ordem e consequencia d'elle, é a prova manifesta. Primeiramente diz o texto, que lancem a sua fazenda sobre as aguas: Mitte panem tuum super aquas, que é o que fazem os mercadores. Logo aconselha que dêem parte d'essa mesma fazenda, ainda que seja muita, e mais que muita: Da parlem septem, nec non et octo. E porque hei de dar esta parte? Porque os successos futuros do mar são muito duvidosos e contingentes, e eu ignoro se serão maus: Quia ignoras, quid futurum sit mali. E sendo os taes successos duvidosos, e podendo ser maus, é prudencia e conveniencia grande dar parte do cabedal para o não perder todo. Pergunto: que fazem os mareantes quando se vêem nesses perigos? O que fizeram os da nau de Jonas, que lançaram tudo quanto levavam ao mar. E se no perigo se ha de lançar tudo ao mar, não é muito melhor livrar do mesmo perigo, e salvar e segurar tudo, só com dar uma parte?

S. Francisco
Xavier.

III. Isto é o que fazem em nossos tempos os homens, e o Os seguros de que ensinou e aconselhou tanto antes o Espirito Sancto. Mas eu venho publicar hoje e apregoar outros seguros muito mais seguros para a mesma navegação e para o mesmo commercio. E que seguros são estes? Os da protecção de S. Francisco Xavier, os quaes são mais seguros por duas razões. A primeira, porque seguram muito melhor. A segunda, porque seguram muito mais. Ponhamos primeiro os exemplos, e nelles veremos este melhor, e este mais.

Navegando para Coulão, na costa da India, um navio mercantil em conserva de outros maiores, estes, por evitar o perigo das correntes e baixios, se engolpharam, sustentando-se com trabalho ao rigor dos ventos, que não só eram contrarios, mas furiosos; e não se atrevendo o piloto a se empenhar tanto com o seu, por menos possante, se recolheu ao abrigo de uma enseada. Era o capitão (ou mestre) junctamente o mercador, e considerando que as monções estavam no fim, e que naquelle tempo se fechavam os portos, com que seria obrigado a binvernar alli com perda não só de viagem, senão das mesmas mercadorias; no meio d'esta afflicção fez voto a S. Francisco Xavier, de umas cortinas de téla para o seu altar, se lhe désse o successo que só do céu se podia esperar. Em o mesmo poncto cumpriu Deus, pelo seu apostolo, o que tinha promettido pelo propheta Isaias: Invocabis, et Dominus exaudiet; cla

Dous

exemplos.

Isai. 58

« VorigeDoorgaan »