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CANÇÃO X

Junto d'hum sêcco, duro, esteril monte,
Inutil e despido, calvo e informe,
Da natureza em tudo aborrecido;
Onde nem ave vòa, ou fera dorme,
Nem corre claro rio, ou ferve fonte,
Nem verde ramo faz doce ruido;
Cujo nome, do vulgo introduzido,
He Feliz, por antiphrasi infelice;
O qual a natureza

Situou junto á parte,

Aonde hum braço d'alto mar reparte
A Abassia da Arabica aspereza,
Em que fundada ja foi Berenice,
Ficando á parte, donde

O sol, que nella ferve, se lh'esconde;

O cabo se descobre, com que a costa
Africana, que do Austro vem correndo,
Limite faz, Arómata chamado:
Arómata outro tempo; que volvendo
A roda, a ruda lingua mal composta
Dos proprios outro nome lhe tee dado.
Aqui, no mar, que quer apressurado
Entrar por a garganta deste braço,

Me trouxe hum tempo e teve
Minha fera ventura.

Aqui nesta remota, áspera e dura

Parte do mundo, quiz que a vida breve Tambem de si deixasse hum breve espaço; Porque ficasse a vida

Por o mundo em pedaços repartida.

Aqui me achei gastando huns tristes dias,
Tristes, forçados, máos e solitarios,
De trabalho, de dôr, e d'ira cheios:
Não tendo tãosómente por contrarios
A vida, o sol ardente, as águas frias,
Os ares grossos, férvidos e feios,

Mas os meus pensamentos, que são meios
Para enganar a propria natureza,

Tambem vi contra mi;

Trazendo-me á memoria

Alguma ja passada e breve gloria,
Qu'eu ja no mundo vi, quando vivi; .
Por me dobrar dos males a aspereza,
Por mostrar-me que havia

No mundo muitas horas d'alegria.

Aqui 'stive eu com estes pensamentos
Gastando tempo e vida; os quaes tão alto
Me subião nas azas, que cahia
(Oh vêde se seria leve o salto!)
De sonhados e vãos contentamentos
Em desesperação de vêr hum dia.
O imaginar aqui se convertia

Em improvisos choros e em suspiros,
Que rompião os ares.

Aqui a alma captiva,

Chagada toda, estava em carne viva,
De dôres rodeada e de pezares,
Desamparada e descoberta aos tiros
Da soberba Fortuna;

Soberba, inexoravel e importuna.

Não tinha parte donde se deitasse,
Nem esperança alguma, onde a cabeça
Hum
pouco reclinasse, por descanso:
Tudo dor lhe era e causa que padeça,
Mas que pereça não; porque passasse
0 que quiz o destino nunca manso.
Oh qu'este irado mar gemendo amanso!
Estes ventos, da voz importunados,
Parece que se enfreião:

Sómente o Ceo severo,

As estrellas e o fado sempre fero,
Com meu perpétuo damno se recreião;
Mostrando-se potentes e indignados
Contra hum corpo terreno,

Bicho da terra vil e tão pequeno.

Se de tantos trabalhos só tirasse
Saber inda por certo que algum' hora
Lembrava a huns claros olhos que ja vi;
E s'esta triste voz, rompendo fóra,
As orelhas angelicas tocasse
Daquella em cuja vista ja vivi;

A qual, tornando hum pouco sobre si,
Revolvendo na mente pressurosa
Os tempos ja passados

De meus doces errores,

De meus suaves males e furores,
Por ella padecidos e buscados,
E (pôsto que ja tarde) piedosa,
Hum pouco lhe pezasse,

E lá entre si por dura se julgasse: .

Isto só que soubesse me seria

Descanso para a vida que me fica;

Com isto affagaria o soffrimento.

Ah Senhora! Ah Senhora! E que tão rica.
Estais, que cá tão longe d'alegria
Me sustentais com doce fingimento!
Logo que vos figura o pensamento,
Foge todo o trabalho e toda a pena.
com vossas lembranças

Me acho seguro e forte

Contra o rosto feroz da fera morte;
E logo se me juntão esperanças
Com que, a fronte tornada mais serena,
Torno os tormentos graves

Em saudades brandas e suaves.

Aqui com ellas fico perguntando
Aos ventos amorosos, que respirão
Da parte donde estais, por vós Senhora;
Ás aves qu'alli voão, se vos virão,

Que fazieis, qu'estaveis praticando;
Onde, como, com quem, que
dia e que
Alli a vida cansada se melhora,

Toma espiritos novos, com que vença

Só por

A fortuna e trabalho,

Só por tornar a vêr-vos,

ir a servir-vos e querer-vos.

Diz-me o tempo que a tudo dará talho:

Mas o desejo ardente, que detença

Nunca soffreo, sem tento

hora.

Me abre as chagas de novo ao soffrimento.

Assi vivo; e s'alguem te perguntasse,
Canção, porque não mouro;

Podes-lhe responder; que porque mouro.

CANÇÃO XI

Vinde cá meu tão certo Secretario
Dos queixumes que sempre ando fazendo,
Papel, com quem a pena desaffógo.
As semrazões digamos, que vivendo
Me faz o inexoravel e contrário
Destino, surdo a lagrimas e a rôgo.
Lancemos água pouca em muito fogo,
Accenda-se com gritos hum tormento,
Que a todas as memorias seja estranho.
Digamos mal tamanho

A Deos, ao mundo, á gente e, emfim, ao vento,
A quem ja muitas vezes o contei,

Tanto debalde como o conto agora.

Mas ja que para errores fui nascido,
Vir este a ser hum delles não duvido.
E, pois ja d'acertar estou tão fóra,
Não me culpem tambem se nisto errei.
Se
quer este refúgio só terei,

Fallar e errar, sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!

Ja me desenganei que de queixar-me
Não s'alcança remedio; mas quem pena,
Forçado lh'he gritar, se a dôr he grande.
Gritarei; mas he debil e pequena
A voz para poder desabafar-me;
Porque nem com gritar a dôr se abrande.
Quem me dará se quer que fóra mande
Lagrimas e suspiros infinitos,

Iguaes ao mal que dentro na alma mora?

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