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ADVERTENCIA PRELIMINAR

Se as ondas do mar da Conchinchina tivessem tragado os cantos divinos do primeiro Epico portuguez, se a tuba do immortal Cantor se houvesse despedaçado a tanta distancia da patria contra aquelles rochedos, ainda assim lhe ficava a lyra para dedilhar as suas variadas cordas, tirando d'ella os mais maviosos, ternos, graciosos e elevados sons, inspirados pelo enthusiasmo e pela mais fina e delicada poesia. Embora o silencio de alguns contemporaneos forcejasse por sepulta-lo no esquecimento, este mesmo silencio da inveja, mais significativo do que o elogio de thuribularios que mutuamente se incensavam, rompia por entre o fumo dos seus estereis louvores, collocando-o acima de todos aquelles que no seu tempo cultivaram as musas patrias. Se os Lusiadas tivessem tido a mesma sorte que o seu Parnaso, teriamos ainda n'esse respigo que nos ficou de mais sazonada colheita, n'essas poesias, aindaque posthumas e incorrectas, sufficiente cabedal para apresentar e reivindicar para a nossa patria um eminente poeta, tão grande como aquelles que o foram melhores, e a litteratura portugueza, digo a litteratura em geral, poder collocar sobre a fronte do Poeta aquella mesma corôa com que a Italia ou antes o consenso dos homens doutos de todos os paizes ornaram a do amante de Laura, o terno Petrarcha. Por

certo nem a formosura da dama italiana inspirou cantos mais patheticos e apaixonados ao seu amante enthusiasta e platonico, nem a sua lyra gemeu accentos mais maviosos e tristes descrevendo-lhe o fallecimento no seu Triumpho da morte, do

que a de D. Catharina de Athaide ao Cantor dos Lusiadas. Era sem duvida excessiva a modestia no Poeta portuguez quando desejava uma penna angelica para celebrar a sua Natercia, e reputava menos alta a sua voz do que a do cisne, que elle tanto prezava e procurava imitar, que havia cantado a Laura. Mas para que se não julgue que é opinião de um enthusiasta que sabe comtudo reprimir o seu enthusiasmo á vista da verdade, quando é necessario, porei aqui o juizo insuspeito de um estrangeiro, o sabio traductor das obras do mesmo Camões, D. Lamberto Gil. Eis-aqui como se expressa fazendo o parallelo dos dois grandes poetas:

«Petrarca habia sido entre los italianos el que mas habia contribuido, por sus trabajos literarios y por sus composiciones liricas, a dar al idioma italiano las gracias de la poesia antigua, e añadir-le otras propias de su tiempo. Podemos comparar pues las poesias de Camoens con las composiciones liricas del Petrarca que son las que constituen la fama de este autor; e haciendolo asi, estoy persuadido que las personas imparciales no creeran que las composiciones del Poeta portuguez sean inferiores a las

del italiano.

Parece-me incontestable, que las de nuestro poeta tienen un estro igual al de su predecessor, e ofrecen la misma armonía en la versificacion e elegancia en el lenguage; la misma vivesa de imagines y delicadesa de sentimientos; y ademas tienen sobre las del Petrarca la ventage de ser menos cargadas de conceptos e sutilezas, y de presentar mucho mayor valentia en los pensamientos. Ambos ofreceron el ejemplo de la pasion mas pura amando con extremada constancia e fineza damas a quien no podian unir-se: ambos experimentáron la infelicidad de sobreviverles. Ellos se hallaron por conseguiente en las mismas situaciones para cantar e llorar despues el objeto de sus amores. Entretanto el genero e circunstancias particulares de la vida de cada uno debieron influir de un modo bien diferente en sus composiciones; influjo el mas desvantajoso para las poesias de Camoens, e el mas favorable para las del Petrarca.

«Este vivió feliz, rico e buscado de los grandes, residiendo en las cortes ou en una buena casa de campo, en el pais mas bello e civilizado del mundo: y cultivó las letras sosegadamente en los intervalos de los negocios. Camoens por el contrario viveć pobre, perseguido, desterrado, y passó la mejor parte de la vida lejos de su patria, por climas feroces, pudiendo apenas dar al estudio algunos momentos substraidos a la tumultuosa ocupacion de las armas, y acibarados con el disgusto de ver-se mal recompensado e aun maltratado por sus ingratos compatriotas. Advierta-se ademas, que el Petrarca tuvo tiempo para corregir, perficcionar y publicar el mismo sus poesias, lo que no sucedió a Camoens. Quanto debemos ensalzar el ingenio de este poeta, cuando apezar de tantas desvantajas, observamos que el no es inferior, antes bien es superior al primer poeta que ha tenido la Italia en este genero. »

Apesar porém de uma tão grande superioridade eram já passados sete annos depois da morte de Camões e ainda o publico não conhecia divulgadas pela imprensa nenhuma das suas poesias varias, se exceptuarmos a ode vIII e a elegia Iv, quando pela primeira vez saíram impressos na officina de André Lobato, moço da capella real, os dois autos dos Amphitriões e de Filodemo. Pelo emprego do editor podemos talvez acreditar que elles fariam parte do reportorio das peças que então se representavam no paço, as outras suas poesias lyricas se conservavam talvez com estupida avareza em cancioneiros manuscriptos, por mãos de particulares nas estantes pulverulentas d'onde mais de uma vez virgens teem feito funebre saímento para se sepultarem no vasto cemiterio da tenda do mercieiro tantas joias preciosas do genio portuguez!

Corria o anno de 1594 quando D. Gonçalo Coutinho, grande amigo do Poeta, e o qual, conforme a asserção de um dos traductores dos Lusiadas (Paggi), se achava ausente pelo tempo da sua morte, lhe melhorou a sepultura. Mecheu-se nas cinzas de Camões, e ellas encerravam ainda em si bastante fogo de amor da patria para inflammar os seus compatriotas; a mesma oppressão com que se achavam suffocados pelo jugo estrangeiro deu mais força para reagirem os sentimentos patrioticos que se manifestaram n'este culto ás cinzas do cantor da gloria e independencia nacional, como um protesto reservado contra a tyrannia

que os avexava. Lavrou o enthusiasmo de peito em peito, e começaram logo a queimar-lhe incensos sobre a sepultura, que se reflectiam sobre aquelle que lh'a honrava:

Per muse illustri, e arme, e avi illustri
Ch'al Camoens nella morte fu Mecena.

Era esta a occasião propicia de qualquer emprehendedor tentar a publicação das suas poesias; aproveitou tão bom ensejo o livreiro Estevão Lopes, e no anno de 1595 deu pela primeira vez á luz uma collecção das suas Rimas, as quaes colligiu e ordenou o licenciado Fernando Rodrigues Lobo Surrupita, assim como as achou viciadas por copistas, não se atrevendo a emendar cousa alguma; conhecendo comtudo que muito differentes houveram de saír se Camões as tivesse publicado em sua vida. Foi esta edição princeps das suas Rimas dedicada a D. Gonçalo Coutinho, e n'ella allude o editor, ou antes dá por motivo principal de lh'a dirigir, as honras que acabava de tributar á memoria do Poeta, Escassa é ainda, como era de esperar, esta primeira publicação; admira-me como o editor não recorreu a quem recolhesse o pobre e miseravel espolio de sua mãe fallecida de pouco, do qual deviam fazer parte os autographos do filho por elle corrigidos, pois não padece duvida que tencionava publicar as suas obras poeticas, como claramente se deprehende de alguns sonetos que são como prologos das differentes materias que deviam conter. Existiam mesmo estes autographos? ou o excessivo escrupulo do Poeta, que nos ultimos dias da vida só olhava para o céu e julgava baixas todas as cousas terrenas, com aquelle sentimento religioso e contricto, com que na foz do rio Mecon havia pendurado nos salgueiros a sua lyra profana molhada do naufragio para ficar como trophéu de quem o tinha vencido, julgaria dever de todo despedaça-la, despedindo-se do mundo para se arrebatar nas celestes harmonias, onde, como nos fazem acreditar os seus ultimos contrictos e atormentados momentos, ía entrar no coro de mais suaves cantores? A consciencia timorata da mãe decrepita, para cumprir com o regulamento do tribunal da inquisição que assim o prescrevia, entregaria estas poesias incorrectas n'aquelle tribunal, para obter o placet para a conservação ou publicidade, a qual depois em parte soffreu objecção, e

ali jazeriam? Os religiosos amigos do Poeta, com a frialdade ascetica ou antes com o fogo ascetico que arde mais violento, julgando que as poesias eroticas, maviosas e acaloradas do vate seu amigo poderiam servir de incentivo para peccaminosas intenções, resolver-se-íam, pensando que o grande epico tinha assás conquistado a gloria com o seu poema immortal, a inutilisa-las, fazendo-o passar pelo mesmo sacrificio por que tinham passado outros escriptores do mesmo genero de litteratura não menos apaixonados e adoradores do sexo feminino que depois vestiram o burel do monge?1 Encantado pela locução delicada, novidade da phrase, deteria algum monge illustrado, porventura o proprio Fr. Luiz de Sousa, o braço do executor, qual outr'ora o de Abraham o anjo, e se viesse a uma concordata de ficarem estas poesias confinadas na livraria, em parte reservada, para o estudo da lingua, e onde mais tarde deveriam ser a final devoradas pelo incendio que reduziu a cinzas a sua livraria e mosteiro de Bemfica? São duvidas difficeis de solver e desatar, porque nada nos deixaram dito aquelles que o podiam dizer; comtudo sabemos pelo testemunho dos editores que algumas d'estas composições, com que porventura tinha brindado a amigos, sobreviveram e serviram para as differentes publicações das suas obras; porém, como os mesmos editores não advertiram em notà quaes estas fossem, este ponto fica ainda completamente obscuro, nem póde descriminar-se nas collecções quaes sejam as genuinas e expressamente copiadas dos autographos do auctor.

Fernando Rodrigues Lobo Surrupita, collector e revisor da primeira edição das Rimas (1595), não foi dos mais felizes em encontrar esses originaes ou copias correctas: era este homem douto, conhecedor da lingua de Homero e Virgilio, como demonstra o prologo scientifico que acompanha a edição, e não hospede em poesia, como tive occasião de ver em composições suas manuscriptas. N'aquelle prologo nos declara os motivos que teve para que seguindo o exemplo de Vario e Tuca na Eneida não emen

1 A litteratura portugueza perdeu muito com o sacrificio que alguns religiosos fizeram das suas poesias ao entrar no claustro. As poesias profanas de Fr. Agostinho da Cruz seriam, a meu ver, superiores ás de seu irmão Diogo Bernardes; sobra a este o que falta áquelle, isto é, sentimento. De Fr. Bernardo de Brito apenas sobreviveu a Sylvia de Lizardo e com nome supposto. Que versos não seriam os do poetico archi-prosador portuguez, Fr. Luiz de Sousa? Não faço mais longa enumeração porque é desnecessaria.

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