Pagina-afbeeldingen
PDF
ePub

Ora já que as consciencias
O tempo as levou comsigo,
Venhamos ás penitencias,
Senhor, se eu vira castigo.
Boas são as residencias.

Mas eu vejo cá na aldeia
Nos enterros abastados,
Muito padre que passeia,
Emfim, ventre e bolsa cheia
Absoltos dos seus peccados.
Se se hão de reconciliar,
Uns c'os outros tem seu tracto,
Basta-lhes só acenar,

Não nos fazem tão barato
Ao tempo de confessar,

Senhor, esta vossa vara
Em quaes mãos anda, tal é,
A boa é ave mui rara,
Sabei que esta nunca é cara,
Que seja muita a mercê.
Livre de toda a cubiça,

A Deus temente, e a vós,
Sem respeito, e sem preguiça,
Vara direita sem nós,

Se quereis que haja hi justiça.
Tomae senhor o conselho

i

:

Do bom Jethro ao genro amigo, (135)
É verdade, é evangelho,
(Como disse aquelle velho)
Humildemente vos digo.

Que estas leis justinianas,
Se não ha quem as bem reja,
Fóra de paixões humanas,
São um campo de peleją
Com razões francas e ufanas.

Morre o nobre. Conradino (136)

C'o parceiro em tudo igual,
Cada um de tal morte indino,
Pelo pesado ou malino

Doutor, que interpreta mal.

Diz o texto: «O sangue cesse;
Por batalha a guerra finda. »
Vem com grosa outro interesse;
Diz que ande o cutello, ainda
Que em prisão certo o tivesse.

Obras do Doutor Francisco de Sá de Miranda, Lisboa 1644-Carta 1. pag. 102.

N. B. Em alguns versos segui a edição de 1595.

EPISTOLA A DIOGO BERNARDES

Fez força ao meu intento a doce, e branda
Musa tua, Bernardes, que a meu peito
Dá novo sprito, novo fogo manda.
Como um juizo queres, que sujeito
Vive a tantos juizos, se não guarde
De tanto riso, e rosto contrafeito?
Quanto em mim mais das Musas o fogo arde,
Tanto trabalho mais por apagal-o,
Quanto o silencio vale, sabe-se tarde.
A medo vivo, a medo escrevo, e fallo,
Hei medo do que fallo só commigo;
Mas inda a medo cuido, a medo calo.
Encontro a cada passo c'um imigo
De todo bom sprito; este me faz
Temer-me de mim mesmo e do amigo.
Taes novidades este tempo traz,
Qu'é necessario fingir pouco siso,
Se queres vida ter, se queres paz.
Vida em tanta cautela, tanto aviso,
Quando me deixarás? quando verei
Um verdadeiro rosto, um simples riso?
Quando a mim me crerão, todos crerei
Sem duvidas, sem côres, sem enganos,
E eu, que de mim mesmo seja Rei!

Ah!tantos dias tristes, tantos annos
Levados pelos ares em desejos

De falsos bens, e nossos tristes damnos!
A quem os deixa, e foge, quão sobejos
Lhe parecem mais bens, que os que só bastam
Desviar da virtude os cegos pejos.

Quantos as vidas, quantos almas gastam
Em buscar seu perigo, e sua morte,
E trás ella seus jugos crueis arrastam!
Aquelles vivem só, a que coube em sorte
Ao som da frauta, que dos hombros pende,
O mundo desprezar com sprito forte.
Toda minh'alma em desejar se estende
A doce vida, que tão doce cantas,

Que quasi a força quebra, que me prende.
Mas ajuncta a estas forças outras tantas,
Todas quebraria eu, s'azas tivesse,
Com que chegasse onde me tu levantas.
S'eu podesse, Bernardes, se eu podesse
Ser senhor só de mim, eu voaria
Onde do vulgo mais longe estivesse.
Alli quão livremente me riria

De quanto agora choro! alli meu canto
Livre por ares livres soltaria.

Em quanto me vês preso, amigo, em quanto
Sem sprito, sem forças, não me chames
Com teus versos, que a ti só honram tanto.
Por mais que me desejes, mais que me ames,
Não empregues em mim tão cegamente
Teu canto, com que é bem que heroes affames.
Mas tractarei comtigo amigamente

Do conselho, que pedes; juizo e lima
Tem em si todo humilde e diligente.
Quem tanto a si mesmo ama, tanto anima,
Que a si se favorece, e se perdoa,
Que sprito mostrará em prosa, ou rima?
Taes são alguns, a que triste a hera corôa
Roubada do vão povo ao claro sprito,
Que esconder-se trabalha, e então mais soa.

Aquelle dá de si publico grito:

Este cala, e s'encolhe: o tempo em fim
Um apaga; immortal faz d'outro o escripto.
A primeira lei minha é, que de mim
"Primeiro me guarde eu, e a mim não creia,
Nem os que levemente se me rim.
Conheça-me a mim mesmo: siga a vela
Natural, não forçada: o juizó quero
De quem com juizo, e sem paixão me leia.
Na boa imitação, e uso, que o féro
Engenho abranda, ao inculto dá arte,
No conselho do amigo douto espero.
Muito ó Poeta, o engenho póde dar-te,

Mas muito mais que o engenho, o tempo e estudo;
Não queiras de ti logo contentar-te.

É necessario ser um tempo mudo:

Ouvir e lêr somente: que aproveita
Sem armas, com fervor commetter tudo?
Caminha por aqui. Esta é a direita

Estrada dos que sobem ao alto monte,

Ao brando Apollo, ås nove irmãs acceita. (137) Do bom escrever, saber primeiro é fonte. Enriquece a memoria de doutrina

Do que um cante, outro ensine, outro te conte. Isto me disse sempre uma divina

Voz a orelha; isto entendo, e creio.
Isto ora me castiga, ora m'ensina.

Cad'um para seu fim busca seu meio:

Quem não sabe do officio, não o tracta,
Dos que sem saber escrevem o mundo é cheio.
S'ornares de fino ouro a branca prata

Quanto mais, e melhor já resplandece,
Tanto mais vale o engenho, s'á arte se ata.
Não prende logo a planta, não florece,
Sem ser da destra mão limpa é regada,
C'o tempo, e arte flor, fructo parece.
Questão foi já de muitos disputada
S'obra em verso arte mais, sé a natureza?
Uma sem outra vale ou pouco ou nada.

Mas eu tomaria antes a dureza

Daquelle, que o trabalho, e arte abrandou,
Que d'est'outro a corrente, e vă presteza.
Vence o trabalho tudo: o que cansou
Seu sprito, e seus olhos, algu'hora,
Mostrará parte alguma do que achou.
A palavra, que sae uma vez fóra,

[ocr errors]

Mal se sabe tornar: é mais seguro
Não tel-a, que escusar a culpa agora.
Vejo teu verso brando, estylo puro,
Engenho, arte, doutrina: só queria
Tempo, e lima d'inveja forte muro.
Ensina muito, e muda um anno, e um dia,
Como em pintura os erros vae mostrando
Depois o tempo, que o olho antes não via.
Corta o sobejo, vae acrescentando

O que falta, o baixo ergue, o alto modéra
Tudo a uma igual regra, conformando..
Ao escuro dá luz, e ao que podéra

Fazer duvida, aclara: do ornamento Ou tira ou põe: c'o decoro o tempéra. Sirva propria palavra ao bom intento, Haja juizo, e regra, e differença

Da pratica commum ao pensamento. Damna ao estylo ás vezes a sentença,

Tão igual venha tudo, e tão conforme Que em duvida estê ver qual d'elles vença... Mas diligente assim a lima reforme

Teu verso, que não entre pelo são, Tornando-o, em vez de ornal-o, então disforme. O vicio, que se dá ao pintor, que a mão

Não sabe erguer da tabua, foge: a graça, Tiram, quando alguns cuidam que a mais dão. Roendo o triste verso, como traça,

Sem sangue o deixam, sem sprito, e vida:
Outro o parto sem fórma tras á praça.

Ha nas cousas um fim, ha tal medida,
Que quanto passa, ou falta della, é vicio:
É necessaria a emenda bem regida.

« VorigeDoorgaan »