que se enganou lendo os Lusiadas por uma inexacta versão ingleza; em vez de recorrer ao pedandesco juizo de La Harpe, e a estas miserias de Delille; em vez de recorrer ás inexactidões de Sismondi, o qual confessa não ter lido muitas das obras que se atreve a criticar, todo Francez que ignora o portuguez, se quizer conhecer a Camões razoavelmente, recorra a Mr. Ferdinand Denis, seu autor o mais instruído nas cousas do Brazil e de Portugal, ou tambem á traducção de Mr. Millié, bem como ás notas que lhe vem annexas: nellas falla-se da ficção da ilha encantada, mostra-se que he uma allegoria desconhecida pelos criticos, e defende-se o autor ácêrca da mistura do christianismo com o paganismo. Verdade he que uma ou outra vez algum máão uso faz elle da fábula, defeito que lhe era commum com os contemporaneos, e que se lhe lança em rosto exclusivamente; mas he tambem verdade, como notou o sagaz ingenho de Mme de Staël, que só emprega o maravilhoso do paganismo na pintura dos prazeres, e o do christianismo nas cousas graves e sérias da vida: o heroe Vasco da Gama, por exemplo, nunca se dirige a Mercurio ou a Jupiter; e para a ficção da ilha dos amores não houve concerto do Padre-Eterno com Venus e Cupído, como inexactamente o affirma o paraphraseador da Eneida. O seu triste juizo a respeito de Camões foi para mim uma occasião de grande prazer, o de lêr mais uma vez o episodio da ilha dos amores. Se Delille tivesse meditado, e não se contentasse de ostentar a este respeito uma falsa erudição, observaria que, a ser este canto indigno de emparelhar com a poesia de Virgilio, não teria sido o modelo da ilha de Armida. A idéa principal tirou-a Tasso de Camões, a quem tanto amava, e do poeta latino imitou muitos rasgos sensiveis; tecendo porêm tudo com tanta arte, e do seu accrescentando bellezas taes, que esta parte da Jerusalem, não sendo a ilha do bom Luiz, como elle chama o seu unico rival nesses tempos, nem o livro Iv de Virgilio, he um dos melhores trechos entre antigos e modernos. Na mesma passagem em que Delille tanto se desmanda, affirma que o palacio encantado, obra do Amor, tam caro a Armida, emquanto he habitado por Reinaldo, e entregue ds chammas depois da sua partida, he uma das idéas mais felizes concebida jamais por nenhum poeta epico.- Postoque seja uma digressão, consintam-me refutar esta affirmativa; refutação que redunda em honra da literatura da nossa lingua. Francisco de Moraes, no Palmeirim de Inglaterra (em prosa, mas bella composição poetica do genero epico) concebeu o palacio de Leonarda; palacio encantado onde essa princeza, fructo de um amor infeliz, foi encerrada, e que tambem desappareceu, depois que ella desencantada sahiu dalli para casar. A imaginação do poeta portuguez não he menos fertil que a do italiano, e a aventura da copa, que precede ao desencantamento, he igual ao melhor de Ariosto. A mais atra este veu-se Francisco de Moraes, compoz dous desencantamentos, que mencionámos, e o da mesma Leonarda pelo cavalleiro do selvagem e por Daliarte do Valle-Escuro; isto com tal invenção, que nos dous desencantamentos não ha lance em que um se pareça com o outro. Não he de balde que Cervantes queria uma caixa onde o Palmeirim fosse guardado com as obras do poeta Homero; não he de balde que Walter-Scott falla delle com tanto louvor. Quem attentamente examinar o episodio de Camões e o poema de Moraes, autores que escreveram antes do Tasso, verá que este se aproveitou assim de um como do outro, se bem de um modo magistral e com toques originaes. O palacio de Armida não he o mesmo que o de Leonarda, mas offerece muitos pontos de contacto; e no desencantamento da selva, operado pelo bravo Reinaldo, bem se conhece que não foi inutil a Tasso a leitura de Moraes, assim como a este não o tinha sido a do Orlando furioso. Os poetas aprendem uns dos outros; o que nada obsta ao talento e á fòrça creadora; antes, como diz Mme de Staël, fallando de Petrarca e de seus profundos estudos, conhecer mũito serve para inventar, e o genio he tanto mais original, quanto, semelhante ás fôrças eternas, sabe estar presente a todos os seculos. Ao concluir esta refutação, não quero dissimular que na ilha dos amores ha quatro ou seis versos condemnaveis, por contêrem idéas lascivas, se bem exprimidas com palavras decentes; e não he só nesta linda composição que deve ser Camões reprehendido por taes descuidos, de que Virgilio nunca lhe deu o exemplo. Esses versos comtudo não podem embaciar o esplendor de um episodio que abrange boa parte do canto nono e entra muito pelo decimo, no fim do qual ha pensamentos grandiosos, da mais bella poesia e da moral mais sublime. LIVRO V. Firme o heroe já dirige ao meio a frota, Some-se a terra aos empégados lenhos, E horrenda espessa treva ennoita as ondas. Tu que ameaças, Neptuno?» Dice, e a tolda Se os remedidos astros não me illudem. » Dos ossos de meu pae jazigo amado ? » . De excelso cume enxerga os socios vasos, O hóspede e sangue nosso os patrios divos E, se arraiando o mundo a nova aurora, 35 40 45 50 55 60 65 Limpo o dia trouxer, proporei jogos, Pela esquadra ligeira começando: Quem agil tenha o pé, quem destro e forte, Orai, silencio! as frontes enramai-vos. >> Subito, em roscas sete e sete gyros, Fulgura accesa; o arco assim nas nuvens Incerto se he de Anchises a ministra, |