-217 nea pela eburnea sahiam as visões falsas; pela córnea, as sombras verdadeiras. Como Virgilio faz sahir Enéas pela eburnea, dizem os commentadores que nisto indica o poeta e confessa mesmo que a descida aos infernos se deve numerar entre as fábulas. Talvez esta fôsse a mente do autor; mas tal opinião eu não a vejo provada. Quer Enéas sahisse pela porta de marfim, quer pela de corno, tinha sempre de servir-se de uma que não lhe pertencia; porque elle, tendo descido aos infernos em corpo e alma, nem era sombra verdadeira para servir-se da porta de corno, nem era falsa visão para servir-se da de marfim. Pode pois dizer-se que, devendo elle por força dalli sahir por uma, o poeta escolheu aquella. No último verso deste livro, que he o mesmo que o 277 do III, denota o poeta o uso antigo de ancorarem os navios com a popa virada para a terra, onde eram seguros por calabres. Mr. Jal assim discorre a pag. 14 do Virgilius nauticus: «0 verso Anchora de prora jacitur, stant littore puppes, que se acha no fim desta parte do poema tam magnificamente epica, como uma nota alli sómente lançada pelo autor, para se recordar de que deve conduzir os Troianos a Gaeta e ancorar os navios no porto, teria sido substituido por um que não repetisse o do liv. m; pois não podia querer que uma dobrada negligencia marcasse a conclusão deste livro, admiravel pelo estilo e perfeito em suas partes. E digo uma dobrada negligencia; porque, alêm de ser uma repetição, o verso contêm no segundo hemistichio, sem que seja uma belleza, a palavra littore que se lê no verso precedente. » Razão tem Mr. Jal; e o que diz aqui desta repetição, tambem o diz elle das outras que ha em toda a Eneida, as quaes seriam corregidas, se a morte não atalhasse o poeta em uma idade pouco avançada. Todos os versos repetidos na Eneida, eu os traduzo differentemente, conservando comtudo o sentido, e só variando nas palavras.
Tu não menos, Caieta ama de Enéas, Nossas praias morrendo eternizaste; Guarda o lugar teu nome, e se isto he glória, Na magna Hesperia os ossos te assinala.
O pio alumno, exequias celebradas, Túmulo erguido, assim que os mares jazem, A velejar prosegue e o pôrto larga. Auras á noite aspiram, nem seu curso Candida a Lua nega; o ponto esplende Ao trémulo clarão. Circéas terras Costêam-se, onde lucos inaccessos Com aturado canto a rica filha Do Sol atroa, e nos suberbos tectos Odoro cedro em luz nocturna queima, Corre com pente arguto as finas têas. Dalli gemidos a se ouvir, e as iras De horrentes leões cadêas recusando E a deshoras rugindo, e nos presepes Ursos raivar, sanhudos grunhir cerdos, E enormes vultos ulular de lobos; Que a seva deusa com potentes hervas
De homens os transvestira em brutas feras. Porque arribada o encanto a boa gente Não padeça, nem toque as diras plagas, Favoravel Neptuno encheu-lhe as vélas, E dos férvidos váos a impelliu fóra.
Já na arraiada roxeava o pégo, Fulgia em rosea biga a ruíva Aurora : Acalma o vento, nem sequer bafeja, E tonsas luctam pás no lento marmore.
Do largo extensa mata avista Enéas; Della com fluxo ameno o Tiberino, Verticoso e veloz, de arêas flavo,
Ao mar prorompe ao alveo e borda afeitas, Várias aves por cima em cêrco voam, Com meigo trino as auras adoçando. Que dobrem rumo ordena e á selva aproem, E entra contente pelo umbroso rio.
Eia, Erato, exporei do Lacio antigo Os rêis, o estado, a successão de cousas, Quando aportou n'Ausonia a estranha armada; Vou do conflicto recordar o exórdio. Tu diva, tu me inspira: horridas guerras Dirá teu vate, os prelios, os monarcas Ferozes por seu damno; as tuscas hostes, A coalição direi da Hesperia em armas. Mór assumpto se me abre, he mór a empresa. Velho, em socêgo e paz Latino as lavras E cidades regía. He voz que a nympha Marica de Laurento houve-o de Fauno; A Fauno gerou Pico; e este, ó Saturno, Pae te refere: da familia es tronco. O masculino herdeiro, inda em agraço A sorte lh'o tirou gentil princeza, Para um varão madura e já completa, Era o esteio da casa e amplos dominios. Da flor d'Ausonia e Lacio pretendida, Pede-a, em avós e avoengos poderoso Turno ante os mais pulchérrimo; a quem genro Almejando a rainha, apressa as bodas: Obstam porêm terríficos portentos.
De grenha santa, em fundo claustro havia, Com temor conservado, um lauro annoso; Que alli constava, ao começar os muros, Achara e a Phebo o dedicou Latino,
Nomeando Laurentes os colonos.
No tope, oh maravilha! os ares fluídos Nuvem de abelhas a zumbir sulcando, Sentou-se, e em cacho pés com pés travados, Da ramagem pendeu subito enxame. Logo um vate: « Com tropas chefe externo Chegar, donde as abelhas, devisamos, E em senhor se erigir do summo alcaçar. E tambem, junto ao pae Lavinia virgem Com tedas castas incensando as aras, Fogo, oh pasmo! ás madeixas ateado, O ornato viu-se em crepitante chamma ; E ao de rubis diadema e regio crino Accesa, em fumo e pardo lume involta, Espalhar pelo templo a labareda. Terror e espanto foi de illustre fama E no porvir ditosa a decantavam; Mas que atroz guerra promettia ao povo. Busca o velho assombrado o padre Fauno, E o consulta nos bosques d'alta Albunea ; Que, floresta a maior, com sacra fonte Soa, e tetra mephyte exhala opaca. Aqui gentes d'Italia, a Enotria em pêso, O oraculo interrogam. Dons trazendo O sacerdote aqui, se em muda noite De víctimas em pelles estradadas Se encosta e se adormece, avoejantes Vê mil phantasmas, vozerias ouve, Logra aos deuses fallar, e no imo Averno A Acheronte conversa. Aqui, rogando, Bimas do uso o rei mata ovelhas cento, Nos coiros deita-se e alastrados vellos. De repente uma voz sahe da espessura: « Nos thalamos dispostos não confies, Prole minha, e em nenhum latino genro;
De fóra outros virão que o nosso nome Exaltem com seu sangue, e em netos brotem A cujos pés se curve e rode quanto
De um ao outro oceano o Sol perlustra. » Do pae Fauno em silencio o aviso dado, Comsigo elle o não cala; e pela Ausonia A revoar a Fama o assoalhava, Quando a frota os mancebos laomedoncios Da riba ao marachão gramineo ataram.
O heroe, seus capitães e o lindo Iulo,
Sob arvore copada se acolheram ; Na relva, ensina-o Jove, ás iguarias Candiaes tortas sotopõem, e o farreo Solo de agrestes frutas acogulam.
Como os fizesse a míngua dos manjares, Trincada a exigua ceres, com audazes Queixos e mãos violar a fatal crusta, As orlas não poupando e chatas quadras : <«< Hui! que as mesas tragámos » diz brincando, Não mais, lulo. O annúncio as lidas finda;
E o pae, que o recolheu da affavel bôca
Do nume se reteve estupefacto;
Clama emfim: « Salve, terra a nós fadada; Salve, troianos e fiéis penates!
Já temos patria e casa. Hoje recordo
As predicções de Anchises : «Quando, ó filho, Gasto em praia estrangeira o mantimento Te obrigue a fome a consumir as mesas, Descanso espera, o assento ahi te lembre De trincheiras munir. » Esta era a fome, O extremo que traria aos males pausa. Ledos, ao romper d'alva, esta paragem, O povoado e a gente, investiguemos, Do pôrto a dentro esparsos discorramos.
Toca a brindar a Jove e ao divo Anchises;
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