Desce a filha da Noite; e, mal que enxerga Tronca a voz na garganta. A irmã, que ao longe E afeia o rosto, e o seio com punhadas: 840 845 «Como ha-de agora, Turno, a irmã valer-te? Ai! que me resta que te alongue a vida? Posso a tal monstro oppôr-me? Eu deixo o campo 850 Não me enganam de Jove as duras ordens. Paga-me generoso a virgindade! Fez-me eterna? oh pezar! se eu mortal fôsse, Os desgostos findava, e aos tristes manes Nada, meu Turno. Um boqueirão me engula, O troço arbóreo coruscando Enéas, 855 860 865 Luctar com sevas armas. Várias fórmas Nas terreaes entranhas. » Abanando Elle a fronte: «Esses feros não me assustam; 870 Jupiter sim e os inimigos deuses. >> 875 880 885 890 Nem mais a auriga irmã, nem mais seu carro. Em quanto hesita, o lanço Enéas mede, A hasta vibra fatal, forceja e sólta : Nunca assim fremem do mural trabuco 895 900 Turno olha humilde, súpplice ergue a dextra : « Bem mereço, he teu jus, perdão não peço; 905 Mas, se de um pae (de Anchises te relembres) E essa devisa infesta em si trazia. Mal embebe, enfuriado o heroe vozêa : Que! tu me escaparás dos meus com presa !... Pallante vinga-se em teu impio sangue. No peito aqui lhe esconde o iroso ferro : 910 915 920 925 NOTAS AO LIVRO XII. Aqui he onde mais se usa do maravilhoso. Censura-se o quasi descanso dos deuses: Jupiter já não abala o Olympo; Juno já não suscita as borrascas, nem invoca as divindades infernaes. Mas, conforme Delille, he isto antes motivo de louvor que de vituperio: o que ha de mais potente se eclipsa ante a glória do chefe troiano; e a situação dos dous povos, o furor de Turno, a coragem do rival, offerecem majestade mais grave do que as máchinas epicas empregadas na occasião. Nada realça tanto o brilho de Enéas, como o represental-o apoderando-se das vontades celestes, e forçando a propria Juno a recorrer a um ardil, não para expulsar da Italia os Troianos, mas para salvar o seu protegido. «A surpresa e admiração, diz Segrais, sam frequentes. A fortuna, sempre voluvel, não cessa de entretêr a esperança e o temor. Fez-se a paz; he rôta por um agouro; peleja-se, vencem os Troianos; he ferido Enéas, sam repellidos os seus até aos arraiaes; Venus cura ao filho milagrosamente; o heroe levanta a coragem dos guerreiros; não podendo obrigar ao duello, vai assaltar a cidade; emfim Turno he constrangido a vir ás mãos. Cheia de incidentes a lucta, imprevisto sempre o desfecho, de contino cremos lá chegar, e novas circumstancias tendem a retardal-o. » 383-440. 368-423. He ferido o heroe por mão desconhecida, e deixa vêr o poeta que foi pela deusa Juturna: nenhum mortal poude jactar-se de o haver feito. Cura-o lapis, em quem Virgilio, por gratidão, representa Antonio Musa, seu médico e de Horacio e de Augusto; mas o médico tudo conseguiu com o soccorro de Venus. He nobilissima a impaciencia do heroe, que pede lhe arranquem o ferro, usem do meio mais prompto para tornar ao combate; e mal se opéra a cura, ainda coxeando da frechada, veste as armas, abraça e beija o filho, dizendo o que se lê na traducção, do verso 417-423. Aqui ha uma imitação de Homero, mas com a differença requerida pelas circumstancias. Mr. Nisard acha Homero muito superior : eu acho que ambos sam optimos, bem que diversos os quadros. Heitor beija a Astianaz, que se espanta da horrida crista do capacete; aos deuses o consagra, e lhes pede que um dia aquelle filho exceda a bravura paterna, e contando morto o seu inimigo, venha a ser o júbilo de sua mãe: he bella e sublime a despedida, e nunca foi o grande poeta assim pathetico, a não ser nas scenas passadas entre Achilles e Priamo depois da morte de Hei 391 tor. Enéas, que fallava a um adolescente e não a uma criança, não podia servir-se de iguacs imagens; mas da coragem com que soffreu as dores da operação, tira exemplo com que anime a Ascauio, a fim que se recorde sempre que o teve por pae e a Heitor por tio. Cada um dos dous genios igualmente soube aproveitar a situação. He por certo mais pathetico o lugar de Homero, porque o assumpto o ajudava; não foi porêm mais habil que o seu discipulo e êmulo. - 681. 665. Enéas busca a Turno pelo campo, sem querer ferir os que lhe fogem, nem os que o arrostam; só quer o duello: vendo comtudo que Turno o evita, e que já um farpão de Messapo The tinha levado a cimeira e as plumas, se resolve a pelejar. O poeta retardou com arte o duello, para que os rivaes ainda assinalassem o seu indomado valor. Enéas, por inspiração de Venus, traça plano maior, ataca os muros de Laurento, depois de protestos solemnes. A raínha, ao vêr a entrada do inimigo, dando a Turno por morto no conflicto, suicida-se; o que mal sabe Turno, apezar das preces da irmã, corre a travar-se com Enéas. O que se segue he admiravel; mas só direi dos versos 760 e 761, na traducção 737 e 738. Tem Mr. Amar que Segrais se acha embaraçado para justificar a Enéas de cobardia, por não têr consentido que substituissem a Turno a espada que se lhe quebrara. Aindaque não approvo que se collocasse o heroe na precisão de ser justificado, a pecha de cobardia não lhe cabe jamais; pois, não obstante haver Juturna trazido outra espada ao irmão, este não deixou de ser vencido e morto. Enéas tinha visto os pactos rotos já duas vezes, pelos capitães de mais nomeada que restavam a Turno, Tolumnio e Messapo; temeu que, a titulo de trazerem a nova espada, se introduzissem na lica dous ou mais campiões, que unidos a Turno, por si tam formidavel, o atacassem conjuntamente, a elle que não estava de todo são, nem com as suas forças e costumada ligeireza: sendo então o partido mũi desigual, a perfidia podia fazel-o succumbir; e o chefe dos Troianos, cujo fim não era mostrar valentia, mas estabelecer os seus compatriotas, tinha a obrigação de prevenir os perigos. O desfecho por um duello he como o da Iliada; mas Virgilio, vendo que a acção em Homero tinha enfraquecido com a continuação do poema por causa dos funeraes de Heitor, e vendo ao mesmo tempo que a pintura dos funeracs em si mesma era do mais bello effeito; imitando se houve com um tal gosto que equivale ao menos á invenção descreveu atrás os funeraes de Pailante com toques só proprios do seu pincel; e acaba a Eneida pelo duello, nada accrescentando ao dramatico deste remate. <«<A Eneida, conclue Mr. Amar, he sem réplica uma admiravel obra de poesia, e uma das mais bellas de Homero, segundo se tem dito; mas, como epopéa, deixa infinitamente que desejar, quanto |