tados, uma crangia ao peito, posta em um murrão, uma chuça ferrugenta nas mãos, ou uma bésta ás costas, e, a par d'elle, um dos soldados d'este tempo, com uma capa bandada de veludo, coura, e calções do mesmo, meias de retroz, chapeo com fitas de ouro, espada, e adaga dourada, barba rapada, ou muito tosada, topete muito alto: parece-me que tornaria aquelle bom rei logo a morrer de nojo, e que poderia pedir conta aos rêis, seus successores, de se descuidarem tanto nas cousas da India, e de não mandarem prover, que se torne tudo áquella primeira edade, se querem que a India torne a seu ser. Dizei-me, senhores, ha hoje no mundo terra mais fronteira, e em que sejam necessarias andarem as armas mais na mão, que a India? por certo não: pois que descuido é não se attentar este negocio, e não haver um viso-rêi, que se ponha á testa da soldadesca, pera todos o seguirem, e querer parecer capitão, pera todos quererem parecer soldados? que esta é a segunda cousa, que aquelle rei de Cochim dizia, « que ja não vinha do reino, » n'aquella comparação das espadas largas : querendo-nos dar a intender quanto nos ia ja fallecendo aquelle antiguo brio e valor portuguez; quasi alludindo á quelle dicto do nosso bom rei D. João II, quando dizia : « que o bom Portuguez havia de ferir com os terços. » E assi despois que n'este stado entraram verdugos compridos, balonas, e trajos estrangeiros, logo tudo se perdeu; porque a guerra não se faz com invenções, senão com fortes corações: e nenhuma cousa deitou mais a perder grandes imperios, que mudança de trajos, e de leis. E se não vejam aquelle grande da China, e a famosa republica veneziana, se se teem sustentado tantos milhares de annos com tammanha potencia, se é por outra cousa, senão por não consentirem nenhuma mudança d'estas. A terceira cousa, que dizia aquelle rei de Cochim <<< que ja não vinham do reino Portuguezes de ouro, » era moeda, com que então se fazia a carga de pimenta; e tam estimada de todos os reis da India, que d'ella faziam seus thesouros: e assi despois que n'aquelle stado entraram moedas estrangeiras, logo elle começou de definhar; porêm eu cuido que aquelle rei o não dizia polos Portuguezes de ouro, senão porque os soldados d'aquelle tempo, capitães, e viso-réis eram todos ouro na verdade, ouro na liberalidade, ouro na fidelidade, ouro no valor, ouro no primor, ouro no esforço: emfim que, d'aquella edade toda d'ouro, viemos a descahir n'esta toda de ferro, em que tudo isto falta: por onde receio que este negocio se va concluindo; porque vejo a justiça divina mui irada contra aquelle stado, em que ha annos que vai usando do rigor de seu juizo, que foi sempre castigar geraes e publicos peccadores: se não vêde se vos não castiga per mãos dos imigos, que sempre dominámos, e subjugámos; porque athé os mais coitados teem alevantado mãos contra aquelle pobre stado: por onde eu temo que se torne o seu a seu dono, se Deus n'isso não pro 10 vêr, e não pozer os olhos de sua misericordia em muitos virtuosos, que n'ella ha. COUTO. - Soldado práctico, scena II, pag. 90. PRODUCTOS DA INDIA. É aquelle grande imperio da India tam rico, que não saberei dizer de cem partes uma: que maior riqueza quereis que o proveito das finas e curiosas roupas d'aquellas partes, das duas pescarias das fermosissimas e riquissimas perolas da costa de Manar, e ilha de Barem? Deixo outras muitas que ha pela India. Quem vos poderá encarecer a riqueza dos mineiros da pedraria da ilha de Ceilão, rubis, olhos-de-gato, jacinthos, saphyras, robas, amethystas, e todas as mais sortes d'ella? Quem não sabe a grandeza das minas de finissimos diamantes do reino de Bisnaga, d'onde cada dia, e cada hora se tiram peças de tammanho de um ovo, e muitas de sessenta, e oitenta mangelins? * Pois que direi dos finos e preciosos rubis de Pegu, que houve muitos de muito grande valor, e que aquelles rêis traziam ferrados pelo meio, e dependurados nas orelhas per arrecadas; e affirmaram-me, que de noite resplandeciam? Poderá dizer isto aquelle admirabil e riquissimo ornamento, que el-rei D. Manuel mandou ao sancto pontifice, das primicias da India, que espantou tanto mais, que o cofre da mina, ao sancto collegio dos cardeaes, que se não atreveram a lhe pôr preço; avaliando-o em quatrocentos, quinhentos, e seiscentos mil cruzados, e alguns em mais? Pois um so no mundo, o d'este nosso rei D. Sebastião, cousa foi que admirou os principes, e imperadores do mundo. Deixo as pedras particulares, que da India vieram; a de D. Antonio de Noronha, a de Francisco Barreto, a de D. Antonio de Noronha, que stá em poder do conde de Cascaes, seu genro, e outras de sessenta, ou oitenta mangelins; polas quaes se dava, por cadauma, sessenta, ou oitenta mil pardaus: e assi se não achava rei, e senhor na Europa, que as podesse comprar. Pois que vos direi das riquezas, que vossas mulheres, e filhas, e que as raínhas da Europa trazem em seus collares, cintos, braceletes, pendentes, anneis, botoaduras, e em todas as mais partes, que não teem estimação? vieram-vos de Africa, ou da India? Vamos ás minas de ouro: quaes do mundo chegam á quarta parte das que ja disse de Monomotapa, e outras de Africa; das quaes todos os annos saiem pera a India duzentos mil maticaes de ouro, que são mais de quinhentos mil xerafins; afóra mais de duzentos bares de marfim, que valem derredor de oitenta mil pardaus? e o que é muito pera admirar o mundo, que ha bar de trinta dentes, bar de vinte, bar de dés, e bar de cinco, e seis: pola qual conta, cuido que veem todos os annos, d'aquellas partes, ao redor de tres mil dentes, pera os quaes era necessario morrerem, cada anno, mil e quinhentos elephantes. Pois da China vos digo eu poder-se-hão carregar naus de pães de ouro de feição de bateis, que teem cadauin ao redor de dous marcos: e assi valerá cada pão duzentos e oitenta pardaus, de que virão somente oitocentos cada anno; porque antes querem os mercadores trazer seda sõlta, peças de damascos, setins, tafetás de todas as côres, e outras muitas sortes de sedas de ouro, e de prata, porcelanas, muitas, e mui differentes mercadorias, em que se interessam muito. Não fallo na grande prosperidade das minas de Monancabo, na contra-costa de Malaca; d'onde é mui sabido, que iam todos os annos a Malaca muitas embarcações de remo carregadas de ouro: e ainda despois de nós entrarmos na India, havia Chatins, que são mercadores, que não fallavam senão per bares de ouro; que tem cada bar quatro quintaes: e sobre todas as grandezas, se podem contar, por mais admiraveis, as de umas ilhas, que ficam ao nascente de Solor, onde temos forteleza, e uma grande christandade, administrada pelos padres de san' Domingos; a qual ilha foi ter desgarrada uma embarcação com um Portuguez, ou dous, e viram tammanha quantidade de ouro, que pasmaram; porque as armas, á feição das nossas armilhas, ou scudos, e as azagayas, era tudo de finissimo ouro: e segundo presumpção, ficam estas ilhas pegadas ás de Salomão, que descobriu Alvaro de Mendanha, senão forem ellas. Pois que vos direi da cidade de Barcelor, na costa Canará, em que ainda, no tempo que a India se descobriu, * Pêso per que na India se pesam os diamantes. |