chamado de Sua Sanctidade: e umas vezes o mandava ficar a jantar; outras convidava-o pera o dia seguinte, mostrando particular gosto de tractar com elle. E foi crescendo esta facilidade, e favor de sorte que deu em uma mui estreita familiaridade: e tal, que chegou o arcebispo a advertil-o de cousas importantes ao bem-commum da igreja, e a seu officio pastoral; das quaes contaremos algumas. Apontava-lhe o arcebispo, com uma liberdade humilde, erros, e abusos, que havia, em partes da christandade, no governo ecclesiastico: e, com peito de varão apostolico, amoestava-o « que convinha não tardar com o remedio; que pera isso o tinha Deus pôsto n'aquelle logar supremo, pera vigiar, e acudir a tudo: que se se descuidasse, quanto era maior a honra, tanto sería a conta mais estreita. » Tinha o papa um intendimento mui vivo e docil, e era naturalmente brando e bem inclinado: ouvia-o com attenção; e, como se conversara com um egual seu, umas vezes lhe dava descargos; outras lhe pedia conselho, ou remettia o remedio das cousas ao concilio, agradecendo-lhe sempre as lembranças. E como enxergava em todas o profundo juizo de quem lh'as fazia, ia formando maior conceito cada dia do homem; maravilhado de ver que em tam pobres habitos, e tam humildes palavras, stivesse escondida uma tammanha luz de zelo, de virtude, de prudencia. Despois das materias publicas, não se descuidou o arcebispo das particulares suas, e de sua igreja : e conforme aos tempos, e propositos, em que se achava com Sua Sanctidade, se ia descarregando de seus scrupulos, pedindo licenças, remedios, e auxilios do podersupremo, de que convinha star provído pera muitos casos, e desconcertos, que tinha notado em sua diocese occorrerem a cada passo: e quem vivia no cabo do mundo, não podia, com cada cousa, recorrer á sé-apostolica. E o papa, como tinha ja tanta satisfação d'elle, em acabando o arcebispo de propor o caso, ou necessidade, e declarar sua petição, logo the concedia tudo: e algumas vezes lhe dizia com bondade e candideza de principe : - « Não sei que é isto, Braccarense, que vos não posso negar nada. » E em certo negocio lhe respondeu uma vez : << Isso, que me pedis, athé hoje o não tenho concedido a ninguem, mas a vós nan-o pósso negar : fiat. E outra, pedindo-lhe licença o arcebispo pera lhe fallar em uma materia, disse: << Podeis fallar agora, e á tarde, antes de comer, e despois de comer, e todas quantas vezes quizerdes, porque sempre vos ouvirei de boa vontade. » Levou-o um dia comsigo, passeiando, athé o jardim famoso dos papas, que chamam Belveder; e mostrando-lhe as obras, que se iam fazendo, disse-lhe sorrindo-se, como quem lhe sabía ja o humor; - « Porque não fazia la na sua Braga uns paços como aquelles? >>« Sanctissimo padre (respondeu o arcebispo) não é de minha condição occupar-me em edificios, que o tempo gasta. » Não ignorava o papa que havia de ser esta a resposta; e comtudo tornou a instar, e disse: - « Pois que vos parece d'estas minhas obras? » Então, com maior energia, respondeu : -<< O que me parece, sanctissimo padre, é que não devia curar Vossa Sanctidade de fábricas, que cedo, ou tarde hão de acabar, e cahir. E o que digo d'ellas é que de tudo isto pouco, e muito pouco, e nada: e do edificio temporal das igrejas seja mais do que se faz. Mas no spiritual, ahi sim, que é razão ponha Vossa Sanctidade toda a força, e metta todo o cabedal de seus poderes. » E por não ficar com scrupulo de dizer pouco onde via despesa grossa, e mal empregada, foi carregando a mão, e ajunctando razões, ás quaes o papa, com sua natural brandura, acudiu com estas palavras : - « Pois que ha de ser? Quereis que deixemos a obra imperfeita? Eu na verdade não fui auctor d'ella; que não sou amigo de gastar dinheiro em vaidades: acheia começada; folgarei de a acabar: que tambem não tenho outros passa-tempos, em que me oссире. » SOUSA. Vida de D. Fr. Bartholomeu dos Martyres, livro II, capit. 22. HONRAS QUE O PAPA FAZIA AO ARCEBISPO. Convidava o papa algumas vezes ao arcebispo a jantar, umas vezes so, outras em companhia do cardeal de Lorena; e por mimo, e honra particular, mandava que elle lhe lançasse a toalha quando lavava as mãos antes, e despois de comer. Um dia o mandou chamar pera certo negocio, em que se gastou a menha toda; despois mandou-lhe que se ficasse a comer com elle. O modo era, que se punha outra mesa um pouco afastada da de Sua Sanctidade, e n'esta comia o arcebispo. D'esta vez mandou Sua Sanctidade, que lh'a pegassem com a sua; que o queria ter muito juncto de si, e ouvil-o de perto. E quasi, em todo o tempo que durou a mesa, não tractou d'outra cousa, senão louvar, e engrandecer os Portuguezes; encarecendo aos assistentes seu esforço e valentia, e a famosa victoria, que no anno atraz, haviam alcançado dos Mouros de Africa, no cêrco de Mazagão: de que mostrava tivera particular gôsto; e dizia : - « Que tinha por certo não menos liberal o ceo de Portugal em crear excellentes ingenhos, e profundos juizos pera todo genero de lettras, e sciencias, que de animos generosos pera as armas. E que bem se víra o exemplo n'aquelle anno: no qual, em um mesmo tempo, uns sustentando valerosamente o impetu de toda a Africa juncta, á viva fòrça de braço, e armas corporaes, fizeram retirar, e dar as costas ao rei infiel de Marrocos vencido, e desbaratado com grande glória de Portugal, e do nome christão. Outros, com não menos honra e valor, assistiam no arrayal de Deus, em Trento, adjudando com armas spirituaes de consummada sciencia, e trabalhando com studo continuo por darem perfeita victoria á igreja catholica contra os hereges, seus capitaes imigos. Mas que se não espantava, quando punha os olhos nos rêis per quem eram governados, e a quem serviam; que per todas as edades tinham mostrado tam alto valor nas armas, tanta virtude, e zelo na fe, que não era facil de averiguar em qual se avanta L javam mais. » D'aqui tomou o arcebispo occasião, pera se espraiar, em um eloquente panegyrico, dos principes, que então havia n'este reino; encarecendo, com verdade, o zelo do serviço de Deus, e o amor do culto divino, que ja resplandecia nos oito annos de edade d'el-rei D. Sebastião: o sabio e acertado governo da raínha D. Catherina, sua avó, que o creava; a grande religião e heroicas virtudes do cardeal infante D. Henrique; e a particular affeição, que tinha ao serviço da sancta séde-apostolica. <-<< Basta (respondeu Sua Sanctidade) que são principes de Portugal; e com esta so palavra fica intendido tudo o que, em muitas, se não póde bem significar. Tam sanctos, tam devotos, tam amigos de conservarem a fe em sua pureza, e de a dilatarem, foram sempre seus paes e avós. E esta é uma das excellencias, que um varão docto e bem versado nas antiguidades, notava n'esse vosso reino. Em quatro (dizia elle) que achava, era Portugal unico, cadauma muito de estimar, e todas provadas pelos livros. Primeira, que de toda Hespanha, e França, e dos mais reinos christãos da Europa, fôra o primeiro que recebera a sancta fe. Segunda, que despois de recebida, nunca mais a largara, nem perdera, antes a conservara sempre tam inteira e pura, que nenhuma nação do mundo a zelava, nem defendera nunca com mais constancia. Terceira, que não houve gente que a mais longes terras levasse a pregação do evangelho. E a ultima, que não se sabía, que jamais Portuguezes se houvessem levantado, ou tomado armas |