deco-vos muito este gasalhado; e digo-vos que ha muito tempo, que não comi cousa de tanto meu gosto: rogo-vos que me vades ver á cidade, e levai-me uma duzia d'estes bordalos. » E vôlto contra os seus, todo alegre, lhes disse : - « Mandovos eu, que melhor cacei eu que vós ». E em isto lançou o cavallo, e os seus após elle; e Pardales renegando d'elle, e de sua caça. D'ahi a seis ou sette dias, o homem com um gentil presente de peixes, o foi visitar; e foi tam bem recebido, que o infante o abraçou; e, per derradeiro, mandava que fossem com elle a casa de um mercador, e lhe tomassem panno pera se vestir elle, e sua mulher : e logo tornou, dizendo; - « Spera; melhor é que va elle mesmo, e tome isto á sua vontade ». Mandoulhe então dar cincoenta cruzados; e fez trazer um roupão de seda leonada, e deu-lh'o, dizendo: ‹ Este levai pera fazerdes um vestido aquelle vosso filhinho ». E affeiçoou-se-lhe tanto, que o commetteu, se queria viver com elle, e o filhava de escudeiro de sua casa. Não o quero nomear, postoque bem sei d'isto parte; porque sendo elle de gente, em que a mercê, que o infante lhe queria fazer em o filhar por seu, muito bem cabia; e mais que tinha fazenda grossa, teve tam baixos os spiritus, que não lançou mão de tam real offerecimento. Vida do Infante D. Duarte (capitulo VIII). AFFABILIDADE COM QUE O INFANTE D. DUARTE TRACTAVA SEUS MESTRES. Despois de o Infante assi casar, assentou e accrescentou mais no repouso e gravidade, fazendose menos fragueiro e monteador, e occupando-se mais em o governo de sua casa, e stado, e em exercicio de lettras; pera as quaes (como acima stá dicto) se quiz servir de mi. Hei vergonha de dizer com quanta humanidade me tractava; e honra, e animo, que me dava, e fazia; mas como isto re sulta todo em seu louvor, não deixarei de o screa ver; ao menos pera que os nobres tomem exemplo コ de estimar os mestres, quando souberem como um コ tam alto principe tractava o seu. Não consentia que eu stivesse sperando pera entrarmos á lição; mas ordenou que eu não viesse da minha pousada athé não ser chamado, dizendo : - « que não era razão que eu perdesse meu tempo em sperar, podendo-o gastar, e empregar melhor em meus studos. E por isso, mandou a Carransa, seu aposentador, que juncto das casas onde S. A. pousava' (que eram sôbre o chafariz do Rocio) me aposentasse á minha ventade; e as pousadas custassem quanto seus donos quizessem: porque stando assi perto, sendo chegada a hora da lição, e sendo chamado, prestesmente, com pouco trabalho meu, e sem perda de tempo, poderia acudir. Se algumas vezes queria ir fóra folgar, e caçar, mandava-me recado: «Vai dizer a meu mestre, se me dá elle licença pera ir. » Quando stavamos á lição, fazia-me sentar tam chegado a si, que eu me affrontava, e corria ; e dizia-lhe: - «Senhor, deixe-me V. A. star mais arredado, e ache que anda o Rocio cheio de fidalgos que passeiam; e como estas janellas stão todas abertas vêem-nos star; e julgar-me-hão por mal ensinado e descomedido. >>> A isto me respondeu: « Assi quero eu que nos vejam, e intendam como devem de tractar seus mestres; por amor d'isso chegai-vos mais pera ca. » Mestre ANDRÉ DE REZENDE. - Vida do Infante FUNDAÇÃO DE LISBOA. Lisboa, quizeram alguns dizer, que se chamou Olyssippo, e que foi fundada per Ulysses grego. Mas Estrabão, auctor grave, e de muita auctoridade diz: - « Que a cidade, que Ulysses fundou na Hespanha, se chamava Ulyssea » : e mais diz, « que os altos das serras d'antre Malaga e Abdera, na Andalusia, mostram a cidade Ulyssea » : na qual diz que havia um templo de Minerva de muita romagem, como o de Hercules em Calez.» No qual templo de Minerva diz, « que havia armas e insignias de Ulysses. » E diz isto de auctoridade de tres auctores gregos, mais antiguos que elle, chamados Possidonio, Artemidoro, e Ascrepiades mirliano. O qual Ascrepiades diz, que teve schola de moços na Turditania, que foi na que agora é Andalusia; e deixou scripto um livro das gentes d'aquella região, no qual fazia menção da peregrinação de Ulysses, e d'aquella cidade, e do seu templo, e das insignias de Ulysses, que n'elle havia. Dos quaes tres auctores dizem que Homero tomou esta historia; por quanto foram mais antiguos tambem que Homero. O qual screve conforme a elles, e põe a cidade de Ulysses onde a elles pozeram, que é nas serras do reino de Grenada, e não em Portugal, juncto do promontorio barbarico, onde stá Lisboa. Stá Lisboa na Gallacia, perto da bocca do Tejo, e do promontorio barbarico, e do mar oceano atlantico; e aquell'outra stava nas serras de Grenada, sobre o mar mediterraneo balearico, athé onde escassamente chegavam as navegações gregas, e não sahiam do Estreito pera fóra. Polo que, parece que os que dizem: - << Que Lisboa é a cidade de Ulysses», não acertam. Teem elles, n'esta contenda, uma graça, e é, que allegam com Estrabão e com os tres auctores, que Estrabão traz; os quaes todos dizem contra elles. D'onde parece, que elles os não lêram : e quem os ler verá que digo verdade. Lêiam o terceiro livro de Estrabão de situ orbis todo. Quanto mais, que o mesmo Estrabão, auctor grego, que pertendia engrandecer as cousas dos Gregos, logo adiante dá a intender, que tudo o que Homero conta de Ulysses, foi fingido per elle pera ostentar sua erudição, e mostrar que sabía a geographia da Hespanha, e navegação do mar atlantico: porque alguns dizem, « que Ulysses não chegou á Hespanha, nem passou da ilha de Circes » : dos quaes um é Dion philosopho no livro de Troya non capta. E por quanto esta é a verdade, e os nossos letteradores não podiam provar, que Ulysses chegara a Portugal, nem fundara Lisboa, fingiram outra mentira peior que a primeira, e é, « que, postoque ca não viesse aquelle principal Ulysses, que todavia veio ca um seu neto chamado tambem Ulysses; >> o qual, dizem, « que trouxe comsigo uma sua filha chamada Boa»: e dizem, « que estes fundaram, e povoaram Lisboa, e lhe pozeram o nome Ulyssiboa; nome composto d'ambos os seus d'elles Ulysses e Boa. » Porêm, é tam mal fingido este segundo Ulysses, que faz parecer o primeiro mais mentiroso do que foi. E mais diz o vulgo, « que jazem estes dous, pae, e filha sepultados á porta do ferro de Lisboa ». A qual porta do ferro não sonhava começar, quando os Ulysses acabavam em Grecia: porque a porta do ferro foi feita em Lisboa despois que os Romanos conversavam na Hespanha; e os Ulysses acabaram antes que houvesse Romanos no mundo. Ser feita a porta do ferro de Lisboa despois dos Romanos, prova-se, porque nas pedras da porta da Alfofa, sua irmã, stão pedras, que foram tiradas de sepulturas velhas de Romanos, ou imitadores de Romanos, scriptas com lettras romanas. E se aquellas pedras foram tiradas das sepulturas dos Romanos, ou pessoas que os imitavam, signal é, que ja havia Romanos no mundo: os quaes não havia no tempo de Ulysses. Disse que a porta da Alfofa é irmã da porta do ferro; |