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passar pelo Postigo da Trindade; n'isto ouve longe uma campainha a compasso como dos homens que encommendam as almas; o fidalgo estremece quando ouve bradar: «Lembrae-vos das almas que estão no fogo do Purgatorio e em peccado mortal.» O Fidalgo julga vêr já um rancho de defunctos, e eis que lhe sae hum vulnegro da moda dos que costumam encommendar as almas tocando a campainha. Este costume funereo da sociedade portugueza do seculo XVII ainda estava em uso antes da revolução liberal de 1832. Dom Francisco Manoel de Mello tendo vivido a maior parte da vida. fóra de Portugal, extranhava o costume que ridicularisou na scena da farça. O Fidalgo depois de atravessar estas aventuras á maneira de Dom Quixote, chega a final a reconhecer a rua e a casa onde mora Britiz, e annuncia-se com o costume popular atirando-lhe uma pedrinha á janella. A mãe Isabel apparece-lhe, Dom Gil entra ás escuras, para fazer a mudança combinada na Jornada segunda; põe-lhe a velha uma troxa ás costas, e elle sae dizendo:

Ora tudo faz amor,

Até carratão serei.

Mal que o pobre Fidalgo dá as primeiras passadas na rua, a velha corre á janella e grita: Aqui del-Rei, que um ladrão lhe rouba o fato; acode logo Dom Beltrão vestido de Alcaide, e o creado Affonso Mendes de beleguim, e prendem o namorado provinciano. Affon

so Mendes revista-lhe as algibeiras, e extrae-lhe quatro tostões. O Fidalgo ao vêr a velha, exclama com

rancor:

Oh mulher do inferno toda
Nacida para pôr noda

No sangue dos Cogominhos!

Os dois rascões nocturnos fingem que o levam á presença do Doutor Francisco Brabo, por ter arrombado com gazúa em terra de Christãos, dizendo-lhe que hade ser enforcado por ladrão. Dom Gil Cogominho diz como epilogo da farça:

Homens que vos enxerís

Na Corte, como em bigorna,
Vêde bem no que se torna
Qualquer Fidalgo aprendiz.

A graça verdadeiramente portugueza, a linguagem recheada de locuções e de anexins populares, os costumes nacionaes postos em relevo, a versificação facil, mostram quanto Dom Francisco Manoel de Mello se podia elevar como poeta comico. O typo de Dom Gil Cogominho, com solar na Lousã, é uma imagem de Dom Quixote, arreliado pelo seu pagem Sancho, que na comedia se chama Affonso Mendes. Dom Francisco Manoel conhecia as grandes bellezas do theatro hespanhol; tomava-lhe a perfeição sem perder a originalidade. As difficuldades porque fez passar o Fidalgo aprendiz que se vê metido na bigorna da côrte, torna

ram-se uma prophecia; porque o bravo militar, que tanto trabalhara para a independencia portugueza, foi pouco tempo depois preso na Torre Velha, durante seis annos, segundo uns, victima de uma traição de Dom João IV, em que a Britiz da farça foi a Condessa de Villa Nova e Figueiró, segundo outros por falsas confidencias dos assassinos de Francisco Cardoso, que n'esta intriga, de que só tarde foi salvo por Luiz XIII de França, fizeram o papel de Affonso Mendes e de Dom Beltrão.

CAPITULO VII

O Padre João Ayres de Moraes

Invasão do Seiscentismo no theatro nacional. —O Tratado da Paixão do Padre João Ayres de Moraes representa esta influencia. Como deve ser julgado o seiscentismo em philosophia da litteratura.- Parallelo do Tratado da Paixão com o Auto do Padre Francisco Vaz de Guimarães. — O Auto da Paixão traduzido pelos Jesuitas em lingua concani, — No Tratado do Padre João Ayres, Jesus Christo fala em concetti e requintes de linguagem. Fim da eschola nacional do seculo XVI. Começa a influencia absoluta do theatro hes

panhol.

Na historia do theatro portuguez, representa este padre a influencia da poesia seiscentista e agongorada invadindo o lyrismo dos Autos nacionaes. A litteratura do seculo XVI foi essencialmente latina; acompanhava a transformação social. Em Portugal vêmos os codigos romanos com auctoridade de lei, servindo de direito subsidiario; vêmos em religião a intollerancia do catholicismo romano; vêmos em philosophia o Collegio das Artes de Coimbra fechando as portas com o seus Commentarios de Aristoteles á nova philosophia que se propagava na Europa; vêmos o gothico ceder o logar as ordens gregas; vêmos a educação basear-se unica e exclusivamente na cultura da lingua latina; vêmos os escripteres esquecerem-se da lingua portugueza para imitarem o estylo de Tito Livio; a lingua portugueza recebe por seu turno uma fórma alatinada, e o theatro imita as comedias de Plauto e de Terencio.

Contra esta corrente classica que assaltava todos os espiritos e mesmo as instituições, deu-se uma reacção forte no seculo XVII, uma tendencia para abandonar os canones rhetoricos, um instincto que fazia procurar o elemento nacional nas creações artisticas, um sentimento de liberdade e de revolta contra os modelos convencionaes. Chamou-se a este periodo e aos escriptores que procuraram fugir da imitação latina - os Seiscentistas. Este movimento é analogo ao romantismo do seculo XIX, mas faltava-lhe o criterio philosophico, que deu toda a profundidade á Arte moderna. O seiscentismo tem sido considerado como uma phase corruptada litteratura; pelo contrario, é um resultado da emancipação da intelligencia. Sem uma ideia philosophica que alimentasse o genio creador, mas apenas com a noção da independencia da natureza nos seus modos de sentir e de se expressar, os seiscentistas começaram a sua revolução pela linguagem; deixaram as construcções latinas, e as imagens sancionadas por Quintiliano, sentiram que a metaphora é da vida e não das escholas, usaram d'ella com audacia, abusaram pelo deslumbramento, caíram no absurdo. Nas litteraturas não ha contagios de mau gosto, como usualmente se acredita; a litteratura é um resultado das transformações do meio social; a manifestação do genio dos Seiscentistas deu-se ao mesmo tempo na Italia, na Inglaterra, em França, e em Hespanha. Marini ou Lily, Gongora ou os cultistas portuguezes, representam esta revolução, que teve a infelicidade de anteceder a

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