Pagina-afbeeldingen
PDF
ePub

renovação politica do seculo XVIII, ficando por isso esterilisada. Entre nós o snr. Herculano é o unico escriptor que fere bem esta ideia: «O seiscentismo foi uma revolução que falhou, uma tentativa de restauração da nacionalidade em litteratura, que não sendo acompanhada pela restauração social completa do modo de existir portuguez anterior ás influencias romanas, ficou aleijada e rachytica, e substituiu á arte antinacional, mas judiciosa e brilhante, outra falsa e além d'isso ridicula.» (1) A grande florescencia da eschola de Gil Vicente no theatro do seculo XVII, explica-se em parte por esta reacção nacional; mas n'este periodo da historia do theatro, a linguagem conceituosa e excessivamente metaphorica dos seiscentistas veiu servir por seu turno ao modo de dizer chão e ingenuo dos Autos populares. Era um contrasenso, uma incompatibilidade. Acceitemos o facto coma um symptoma do tempo, mas não como signal de decadencia.

O Auto popular aonde melhor se nota a exuberancia da linguagem seiscentista é o Tratado da Paixão de Christo S. N., composto pelo Padre João Ayres de Moraes, impresso em Lisboa, por Antonio Rodrigues, em 1675. O Padre João Ayres era natural da Villa de Abrantes, como elle proprio o confessa no titulo do seu Auto; foi Capellão do Hospital de Todos os Santos, que n'este tempo tinha o privilegio exclusivo de todas

(1) Elogio historico de Sebastião Xavier Botelho, nas Mem. do Conserv. de Lisboa, p. 29.

as representações dramaticas e explorava para ajuda da sustentação dos seus doentes o Pateo das Arcas, cuja historia deixamos tratada no capitulo primeiro d'este quarto livro. É natural que o Padre João Ayres,

com a sua indole caritativa escrevesse o Tratado da

Paixão para coadjuvar o Hospital. É porém certo que o Auto não chegou a ser representado, porque no fim d'elle vem a seguinte declaração: «Os Senhores Inquisidores Apostolicos ordenam que este papel se não represente.» (1) Nas Licenças para a impressão do pobre Auto, apparece uma datada de 31 de Janeiro de 1673, em que se repete a mesma odiosa prohibição: «Vistas as informações que se houveram, póde-se imprimir o Auto de que se faz menção, mas não se representará, e no fim se declarará assi, e impresso tornará para se conferir e se dar licença para correr, e sem ella não correrá.» O pobre Auto foi taxado em meio tostão, talvez por ser o lucro da venda para o referido Hospital de Todos os Santos. O Padre João Ayres de Moraes viveu o resto de seus dias inteiramente cego, e foi para distrahir-se da sua escuridade, que ditou este Auto. No prologo ao leitor assim o dá a entender: «Como a ociosidade (curioso Leitor) seja fonte de muitos peccados, bem que sem a minha vista mal pódem agradar-te as minhas obras, por minhas e por mal polidas, ainda assim quiz dar que fazer ao entendimeuto por livrar-me nas imaginações que traz comsigo a ocio

(1) Pag. 141, Ed. 1675.

sidade, e assim me resolvi, empregando melhor o tempo, a fazer este Tratado: que (supposto em prosa podia ser alivio de tua alma,) quiz que fosse em verso, para ser tambem consolação do teu ouvido, pela pena que me custa o mandar escrever e o não poder limar, como mais largamente, relato no prologo de um livro, que brevemente sairá á luz; que supposto seja humano, com essa galanteria quiz disfarçar o espirito que envolve. Creio eu, que desculparás seus erros, quando conheças a vontade com que desejo saborear-te o gosto. Contém este Tratado a Payxão de Christo S. N., e como em huma Ecloga, que anda impressa, fiz o seu Nascimento, resolvi-me n'este livrinho escrever a sua Morte: Tu pera o leres abre os olhos da alma, e descendo por elles as lagrimas que te merecem suas finezas, por ventura que te sirvam de estadas pera por ellas subir a sua graça. Vale.» Transcrevemos todo o prologo por ser a unica pagina que existe do infeliz poeta cego, cuja sorte nos explica em parte a manifestação do genio dramatico de Balthazar Dias. No fim do Tratado da Paixão, explicam-se as erratas, alludindo outra vez á cegueira do Padre João Ayres: «Como pela incapacidade, que o Auctor aléga no Prologo d'este livro, não póde mais reparar os descuidos da impressão, pede ao leitor, que primeiro que o lêa, ponha os olhos n'estas erratas, e quando encontre mais algum erro, supra sua emenda as faltas de seu achaque.» Os personagens do Auto, são: Christo, Doze Discipulos, N. Senhora, S. João, a Magdalena, Maria Jacob, Ma

ria Salomé, S. Marcella, Um Anjo, Nicodemus, Joseph ab Arimathia, Mulher de Zebedeu, Longuinhos, Sireneo, Simão Lepreso, Um Cego, Anás, Caiphás, Criada, Pilatos, Criado de Pilatos, Criado de Herodes, Principe dos Sacerdotes, Turbas, Phariseos, Povo Hebreu, Povo Gentio, o Diabo, Quatro Soldados. Por esta lista das pessoas se descobre o motivo porque os senhores Inquisidores não deram licença para que se representasse o Tratado da Paixão; tinham de entrar em scena seis mulheres. A scena começa logo com uma. pincelada seiscentista:

CHRISTO Já de caminhar é tempo,

Que ausente a Aurora rosada
Dá sinal que o sol brilhante
Aos orbes de luzes banha.
A Hierusalem pois vamos
Passar a festa da Paschoa
Toda para mim de flôres

Pois tres cravos me prepara.

De todos os personagens, Jesus é o que fala com mais frequencia no estylo alambicado dos concetti; depois que elle descobre a cidade de Jerusalem, diz:

Amigos, já divisamos

A Hierusalem, adonde
Seu Povo ingrato esconde

O aspid da morte entre os Ramos.

Na entrada de Jerusalem, quando o povo o saúda, tambem lhe não esquece este trocadilho, sobre os ra

mos e a cruz:

Reconheço povo bronco

Que a ley de meu Pay infama,
Se agora me dais a rama
Depois me dareis o tronco.

Que differença d'este Auto gongorico para a ingenuidade e rudeza crente do Auto da Paixão do Padre Francisco Vaz, escripto ainda na expansão lyrica do seculo XVI, e cinco vezes reimpresso no seculo XVII, apezar de todas as prohibições dos Index Expurgatorios! Com o dominio dos jesuitas, a crença tornou-se uma abstracção em que se acreditava á força, e que se prestava ás allegorias imaginosas e oucas dos sermonarios; na eschola de Gil Vicente a fé era um elemento vital, um sentimento inalteravel que sustentava a verdade do lyrismo. Importa fazermos aqui o parallelo do Tratado da Paixão, do Padre João Ayres com o Auto do Padre Francisco Vaz, reimpresso em Evora em 16... por Francisco Simões, em Braga, em 1613 por Fructuoso de Basto, em Lisboa por Antonio Alvares em 1617 e 1639, e por Domingos Carneiro em 1659; este Auto, escripto muito antes de 1559, (1) intitula-se: « Obra novamente feita da muito dolorosa Morte e Paixão de N. Senhor Jesu Christo, conforme a es creveram os quatro Santos Evangelistas. Feita por um devoto Padre chamado Francisco Vaz, de Guimarães.>> No Tratado do Padre João Ayres de Moraes encon

(1) Sir John Adamson possuia uma edição d'este anno. Vid. Inn. Dicc. Bibl.

« VorigeDoorgaan »