tram-se diversas qualidades de verso; no Auto do Padre Francisco Vaz, emprega-se sempre o verso de redondilha, na estrophe em quintilhas, e no prologo usa do verso endecasyllabo em endeixas, que Gil Vicente introduzira dos velhos Mysterios francezes: Depois de creados os Ceos e a terra o Filho de Deos por nós padecer Estes versos tem uma melopêa popular intraduzivel; o Padre Francisco Vaz, n'este prologo faz a exposição das figuras que hão de entrar no Auto, Com que sentimento fala do beijo de Judas! Oh beijo malvado de tanto amargor, No Tratado da Paixão não ha uma syllaba, uma vibração que se pareça com isto! A Egreja definiu-se com o Concilio de Trento, circumscreveu-se no dogmatismo esteril; depois foi-lhe impossivel tornar a inspi rar obras de arte; o Auto do Padre Francisco Vaz parece ditado por uma alma mosarabe; o do padre João Ayres é escripto sob a impressão do crê ou morres! Entre os escrupulos tenebrosos do Santo-Officio, e as argucias dos Jesuitas, o sentimento retrahia-se para dar logar á rhetorica calculada. Por estes dotes poeticos do sincero presbytero secular de Guimarães é que o seu Auto mereceu ser conhecido no Oriente. Na reimpressão da Grammatica da lingua Concani, do Jesuita Thomaz Estevam, Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara diz, que o Auto da Paixão fôra traduzido n'essa lingua. Ácerca da existencia d'esta versão, escreve o snr. Innocencio: «0 que porém resta ainda a advertir, é que a tal versão on Declaração como n'ella se intitula, não foi feita simplesmente sobre o escripto do Padre Francisco Vaz, tal como este se imprimiu em portuguez; mas sim se reuniu á d'este a traducção de obras de diversos posto que analogo assumpto. Assim dos extractos citados e da Taboa dos Capitulos reproduzida pelo snr. Rivara, vê-se evidentemente que a versão concani começa na conceição da sanctissima virgem e prossegue com a vida d'esta e com o nascimento e infancia de Christo, até chegar ao capitulo XIIj, que se intitula: «De como N. S. Jesus Christo seis dias antes da sua morte veiu para morrer pelos peccadores na cidade de Jerusalem, e o que mais aconteceu.» Aqui é que começa o original portuguez impresso, e n'este não ha cousa alguma que corresponda ao que antecede na versão. «Ainda mais, o original fenece com a deposição de Christo no sepulchro e o pranto de sua santissima mãe; correspondendo ao cap. XXIV da traducção. Esta á sua parte continúa com mais doze capitulos, tambem novos, comprehendendo a ressurreição, e o mais que antecede a morte e gloriosa assumpção da Virgem.» (1) Vazios de crença, aonde os Jesuitas suspeitavam que existia algum calor d'esse sentimento apoderavam-se logo d'elle para se fazerem acreditar. Foi isto o que os levou a deturparem o fervoroso Auto da Paixão, traduzindo-o na lingua concani, para exaltarem os cathecumenos. Vejamos como estes dois poetas hieraticos traduziram a mesma situação; quando Nossa Senhora vae ao encontro de Jesus, diz o velho Auto do seculo XVI: Ay dolor! Oh vós outros que passaes (1) Dicc. Bibl., t. III, p. 96. No Tratado da Paixão, a Senhora fala com mais hyperbatons, com menos alma: Para d'onde em rigor tanto Nas queixas finaes que faz a Virgem, a linguagem do sentimento perde-se nos conceitos e agudezas engenhosas: Que heide fazer n'esta magoa E seis estrophes abaixo, fala a Senhora, mostrando que conhece as figuras de rhetorica: Chorac, que se o pranto mudo Pelo Tratado da Paixão se conhece que era impossivel reatar a tradição dramatica de Gil Vicente, reconstituir a sua eschola; o padre João Ayres de Moraes assignala o fim do Auto nacional. Combatido pela Censura do Santo-Officio, pelas Tragicomedias dos Jesuitas, ainda não bastavam estes agentes de destruição para extinguil-o; veiu uma nova causa ajudar a desnatural-o: as agudezas do seiscentismo. O Auto popular acommodou-se uma vez a esses labyrintosos equivocos e antes preferiu deixar-se caír no esquecimento. A época não lhe pertencia; queria dar logar aos estranhos. O theatro castelhano, depois da invasão hespanhola ter sido sacudida, dominou absolutamente os nossos escriptores dramaticos, impôz-se á admiração, obrigou-os a escrever na lingua e pelos modelos de Lope de Vega. Havia muito que aproveitar d'esta imitação, se ella não fosse tão absorvente. A tradição do theatro portuguez fica d'aqui em diante novamente perdida; só no seculo XVIII é que se levantará um Antonio José da Silva, um Antonio Xavier Ferreira de Azevedo, um Manoel de Figueiredo, um Sebastião Xavier Botelho, para vêr se descobrem outra vez o genio nacional do nosso velho theatro; mas o ramus aureus não se lhes soltará para dar entrada no mundo da imaginação povoado pelos sentimentos dos nossos |