Que quem lá vai sómente o que pretende É repartir por si e pelos manos
Tudo o que o suor do povo a custo rende, Tirado com os trabalhos mais insanos. Nos contractos cavilla, empregos vende, Veste os compadres dos mais ricos pannos; E chega a infamia a tanta demasia Que já se rouba até na luz do dia!
Por não haver nas linhas capitão Que soubesse da poda e bem mandasse, Atrapalhados lá na côrte estão
Sem saberem que rumo se tomasse. N'uma terra em que é honra ser ladrão, Com tanto que ao flagrante se escapasse, Não póde a escolha ser livre de perigo, Nem contar-se com certo e fido amigo.
N'estas cogitações o grande Lama, Por mais que o olho tenha bem aberto, Em varios pensamentos se derrama; Phantasiando está remedio certo.
Quem lhe acuda, a não ser o de Bolama, Não vê alli á roda, ou longe ou perto. Mas o remedio que esse receitava, Se póde não sujar, tambem não lava.
Qual bichano de amores incendido, De pêlo assetinado e mui formoso, Que, vendo a gata ao longe, vai perdido, Por uma e outra parte buliçoso; E, sendo dos garotos perseguido, Salta, corre, esbraveja furioso E anda pelas paredes e telhado A bufar e a miar, de rabo alçado:
Tal o vago juizo fluctuava
Do grande Lama quando lhe lembrara O mestre Antonio, a quem tanto estimava, E cuja traz na mente sempre a cara. Logo secretamente lhe mandava Que se tornasse á pasta que deixára, Não fosse salteado dos enganos Que lhe estavam tecendo os Marianos.
Tal será quem na festa quer ter parte, Bons petiscos comer, não só cheiral-os: Pagará o patau por força ou arte; Não vá a apertos se não quer ter callos. Quem entra em guerra, d'ella não se parte Sem dar ou apanhar alguns estalos. Pague e não bufe; eu nunca louvarei
Quem ferra cão e diz: já sei, já sei.
Acceita o malabar o grande peso, Que para as unhas d'elle não é nada; Mette dentro da bocca o facho acceso, Salta na corda bamba e dá pernada. Põe-se depois no palco muito teso, Sobe-lhe aos hombros toda a gatunada; E encarando a platéa: «Por ventura Ha quem faça por cá melhor figura?»
Voltava tudo ao rumo conhecido, Aos aureos tempos da vidinha amena, Em que a batota é lei e tem partido, E se pratica burla não pequena. Entra aquelle que outr'ora tão temido Se tornara, com a espada não, com a penna. Entra o outro tambem que na marinha As charadas dos celtas adivinha.
Logo chamam a si toda a fazenda Que nos caixotes publicos se encerra; Querem que logo alli se troque e venda Para arranjar dinheiro para a guerra; Posto que os maus propositos entenda O Lama, que o damnado peito encerra, Consente, porque sabe por verdade Que com tal gente está mais á vontade.
Concertam que se tracte de arranjar Algum ardil com que dinheiro venha, Porque muitos dos seus estão a apitar, E todos querem cousa que convenha. E de outra parte o sestro de gastar, Tenha dinheiro o erario ou não o tenha, Fazia que cada um imaginasse
Nos meios porque o parne se ajuntasse.
É mister que a fazenda cresça logo, Não importa que seja bem ou mal, Que sem polvora ter não se faz fogo, E não se pode ser bom general.
Ponham-se em campo a astucia, a manha e o roubo Vendam-se honras, empregos, tudo vale; Cada um as unhas como pode extenda, Para que se encham os cofres da fazenda.
Um bom emprestimo sería vinha D'onde mais cedo lucro proviesse; Novo modo de imposto não convinha Que por emquanto á praça se trouxesse. O povo ainda na lembrança tinha, Nem tão breve era facil que esquecesse, As ultimas sangrias que minguado Lhe tinham o pobre sangue dessorado.
O que porém de todo era forçoso, Désse por onde désse, era obter cobre; Em o havendo, já cede o mais teimoso, E qualquer logração melhor se encobre. Vê tu agora, povo, se és curioso, Porque o malandro é rico, e tu és pobre; Se soffres tantas dores de barriga,
á tua custa engorda esta lombriga.
A mão na bolsa mette-te um patricio E no outro dia traz relogio de ouro; Outro já tem com que ir matar o vicio De perder na batota o metal louro. Algum levanta altissimo edificio
Com dinheiro que apanha no thesouro.
Est'outro, que ainda ha pouco á mingua morre, Nas ruas da cidade em coche corre.
Este, que faz innumeras despesas Em jantares e chás e outros artigos, Não duvidou fazer torpes vilezas,
Que n'outras terras teem duros castigos. Este corrompe virginaes purezas; Este furta as mulheres aos amigos; Este na academia das sciencias
Rouba livros e faz mil indecencias.
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