a harmonia do verso e o fundo sentimento poetico de quasi todas as nossas criações populares. Duram horas, ás vezes, esses desafios, em que nunca se esgotta a inspiração, nem falha nunca a presteza das rimas, a par da riqueza e da exuberancia da linguagem floreada. A um poeta que provocou o estro de um caipira com a seguinte quadra: "Eu sou maior do que & terra, Eu sou maior do que o céo, Maior do que todo o mundo", respondeu o matuto no mesmo instante: "Eu sou maior do que Deus, E, no entanto, para embatucar a musa do adversario, ha perguntas como esta: "Compadre, vancê me diga, Ha nessas trovas, além do mais, sentenças e maximas philosophicas, conceitos sobre o destino, o amor, o ciume e a saudade, tudo o que a alma humana póde produzir de mais poetico e mais elevado. Exemplo: Se vires a tarde triste Você diz que amor não dóe, Esta noite tive um sonho, A fôrma do teu vestido... Nenhum poeta aristocrata seria capaz de exprimir de maneira mais fina e respeitosa o desejo de posse da mulher amada. Mais positivo, posto que igualmente contido, é este outro cantor anonymo, que põe uma reticencia disereta na febre do seu amor: Larangeira é pão de espinho, Na renda da tua saia... Da espontaneidade do estro popular dão exemplos as seguintes quadras, que ouvimos pela primeira vez, ha vinte e seis annos, cantadas por dous barqueiros, no Tieté: Perdi a credulidade Que tão captivo me fez, Até nas flores se encontra A differença da sorte: Outras enfeitam a morte. Em outras ha sentenças e conselhos moraes que reflectem admiravelmente a faculdade do raciocinio, a par de um certo fundo philosophico adquirido pelas populações sertanejas na experiencia da vida. Essa poesia simples e despretenciosa encerra maximas e pensamentos que têm passado muitas vezes como principios fecundos de sabedoria popular. Exemplos: Quem tiver o seu segredo Não conte a mulher casada, Nunca tive medo de home Cravo não mexe co'a rosa Vancê diz que sabe muito, Quando eu era gallo novo, O amor entra pelos olhos, Se não acha resistencia, Vai seguindo seu caminho... Duas cousas neste mundo Que meu coração não qué: E' pioio de gallinha E ciume de muié. Ha tres cousas neste mundo Que me faz arrenegá: Todo mundo se admira O papel cae dentro d'agua, Quem quizer escolher moça Porque a moça que é velhaca, Pisa no chão de vagar... Os passarinhos que cantam Dizem que o pito allivia E as maguas nunca se vão ! Quem quizer amar direito, A sorte, nós bem sabemos, E' tal qual como a mulher, Lá vai a garça voando A moça que não tivé Que no céo não ha de achá, O amor é bem um menino De coração de serpente: Quando é pequenino, chora; Quando cresce, mata a gente. Ha exemplos de humorismo que traduzem com fidelidade o espirito agudo do mestiço, sempre propenso á galanteria e ao humor. São desse teor os seguintes: No tempo em que eu te adorava, Amava a sete e a oito, Nove comtigo, meu bem! Dizem que a muié é farsa, Que é farsa como papé, Mas quem vendeu Jesus-Christo, Primeiro fez Deus o homem E depois o cata-vento!... Em longa excursão, que fizemos ha tempo, aos Estados do Norte, tivemos ensejo de assistir a algumas dessas funcções em que tão eloquentemente se revela a alma do nosso povo. Annotámos, aqui e alli, grande numero de trovas, caracteristicas de algumas dessas circumscripções brasileiras, e esperamos contribuir com ellas para a classificação com que, de futuro, hajam os ethnologos de desfazer o verdadeiro embroglio, que por ahi corre nos livros e monographias, onde lamentavelmente se confundem versos de Portugal e do Brasil. |