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serenata entre os nevoeiros de Inglaterra, sob as nevadas da Russia, aos balanços do mar da Escandinavia, entre fiords a pique, á sombra abafadiça de um céo de chumbo? Oh! Não! Somos lyricos porque a nossa natureza é benigna, como no meio-dia da Europa.

A poesia trovadoresca de Provença chega a Portugal com os cruzados itinerantes e com os menestréis que acompanhavam os principes em noivado; a lyrica da Italia com as canções de Sordelho e de Bonifacio Calvo; o trovar castelhano com as serranilhas da escola de Juan de Mena; e são esses elementos que assimillados pelo genio da raça, sob a acção temperada do clima iberico, se fundem e desabrocham numa maravilhosa floração que vem de D. Diniz até ás rimas de Corrêa de Oliveira e aos cantares de Antonio Gil.

Essa é pois a origem do nosso lyrismo, que, se ainda está muito ligado ao trovar lusitano pela lingua, pelos moldes da metrica e resquicios da tradição, já delle se vae differençando na maneira de exprimir, senão mesmo na de sentir, pela fatalidade da influencia mesologica.

Nas populações que andavam a errar sobre as aguas o sentimento preponderante era a saudade, que Bilac com tanta belleza chamou presença dos ausentes, essa melancholia inspiradora de todas as obras de arte, desde o amor, a emoção pessoal, até á emoção da Patria, que suscita a energia e os feitos dos heróes. Assim, a suave natureza da Europa meridional só poderia reflectir-se, nos poetas que gerou, em cantos de meiguice e em arrulhos de brando desejo. Dahi as aubades e asserenades. Nessas doces regiões, como aqui, os crepusculos trazem á alma a porção de poesia de que necessita o espirito, creando esse estado de pacificação, que é o consorcio das cousas e dos seres, juntando os esplendores do occaso ás sombras do oriente, fundindo o real com o ideal, mergulhando-nos nesse transe gozoso e virginal em que jazem os crentes ao infuxo da eucharistia. Claro, a natureza do Brasil por mais luxuriante e arreiada favorece o desenvolvimento de uma poesia mais rica de galas e de força, menos dissorada desses suspiros prolongados e lastimosos de fim de raça, mais calida pelo conforto ambiente, mais voluptuosa pelas exigencias do sangue caldeado.

Exemplifiquemos, tomando ao acaso ás producções de dois grandes poetas de Portugal e do Brasil. Nem é preciso se tenha argucia de critico para discernir á primeira inspecção as differenças de molde e de perfume, nessas duas flores oriundas de um mesmo galho.

Ouçamos "Saudades", soneto de Eugenio de Castro:

Cada uma das palavras que vaes ler

Com olhos de divina claridade,

Leva-te, meu encanto, uma saudade,

Mais triste do que as rolas a gemer.

Poucas, bem poucas, são as que, a tremer,
Aqui te escrevo, ó toda suavidade,

Mas fossem mil, não foram nem metade

Das saudades que enturvam meu viver.

Se, arrancados, meus olhos lacrimosos
Podessem ver os teus, tão mysteriosos
Que ao vel-os tudo em sonho se converte

De só por ti chorarem nunca fartos,
Arrancara-os eu já, para mandar-t'os,
Feliz de me achar cego para ver-te.

Leiamos agora "Dentro da Noite" de Olavo Bilac:

Ficas a um canto da sala,

Olhas-me e finges que lês...
Ainda uma vez te ouço a fala,
Olho-te ainda uma vez.

Saio... Silencio por tudo:
Nem uma folha se agita

E o firmamento, amplo e mudo,
Cheio de estrellas, palpita.

E eu vou sosinho, pensando

Em teu amor, a sonhar,

No ouvido e no olhar levando

Tua voz e teu olhar.

Mas não sei que luz me banha

Todo de um vivo clarão;

Não sei que musica extranha

Me sobe do coração

Como que em cantos suaves,

Pelo caminho que sigo

Eu levo todas as aves,

Todos os astros commigo.

E é tanta essa luz, é tanta

Essa musica sem par,

Que eu nem sei se é a luz que canta

Se é o som que vejo brilhar.

Caminho, em extase, cheio
Da luz de todos os sóes,
Levando dentro do seio
Um ninho de rouxinóes.
E tanto brilho derramo

E tanta musica espalho

Que acordo os ninhos e inflammo

As gottas frias do orvalho.

E vou sosinho, pensando

Em teu amor, a sonhar,

No ouvido e no olhar levando

Tua voz e teu olhar.

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Menos experto que seja o observador na graduação dos valores, para logo descobre nessas duas peças de aprimorado lavor as differenças essenciaes do meio em que foram urdidas, independentes da individualidade de cada um dos poetas. Vejamos ainda dois typos para a documentação do conceito atraz emittido, notando-se que propositadamente escolhi dois dos lyristas portuguezes que menos tangem as cordas da elegia e do bucolismo.

E' de Julio Dantas o soneto que se vae ler:

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Se o ser feliz está no bem-querer
Podia ser feliz inteiramente

Quem tanto bem te quer e tanto sente
A certeza de não te merecer.

Se póde acreditar uma esperança
Desgraçado que sempre a viu perdida,
Ainda um bem espero por mudança:

Depois de tanta agrura padecida,

Ha de cançar-se a Dôr que tanto cança,
Se acaso não cançar primeiro a vida.

E de Alberto de Oliveira é esta sentida queixa, esta sonora impaciencia, esta soffreguidão amorosa:

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E' a poesia da esperança em contraste com a poesia da saudade.

Não vedes, porventura, meus Senhores, nesses dois cantos como que espelhados os destinos das duas patrias? E' que os aspectos do nosso ambiente favorecem a eclosão de elementos estranhos ao remoto lyrismo provençal aristocratisado nos cancioneiros dos trovadores galleceo-portuguezes, mas sempre bucolico na essencia, pastoril no fundo, com esse sabor eterno a idillio campesino. Se os povos são felizes, cantam a sua paz e riqueza; se são escravisados ou abatidos cantam lembranças do passado longinquo esperançados num messianismo redemptor.

Ora, aqui a terra é fecunda e barbara; a vegetação numa prodigalidade magnificente baralha em violentas opposições as tonalidades da verdura; as aguas escachoam em estrondo; o mar é acalentador; o céo sorridente esplendido; a população, producto de raças voluptuosas não emigra, agarrada ao solo nativo.

Dahi esse objectivismo dos nossos cantares, por isso que ha mocidade na terra e no povo, e consequentemente mais força, mais paixão e esse deslumbramento pelo espectaculo a que assistimos. Como que cada poeta do Brasil renova nas suas rimas o maravilhoso mytho de Pan.

Dos encantos da mulher amada fazem elles a frauta de que tiram as mais doces harmonias, cantando forte o seu desejo ou modulando os seus queixumes de amor em murmurios gementes, espalhando no ar a sua voz para diminuirem a longura do caminho da vida.

Só agora me lembra que esta precipitosa digressão sem norma, methodo, ou impulsos doutrinarios, vestibulo pobre do edificio de um curso, teve, para o fim de ser annunciada, o titulo de "Poetas lyricos". Epigraphe pleonastica e redundante, que quanto a mim, de nem um poeta sei que não seja lyrico. Classico ou romantico, satanista ou nephelibata, decadente ou parnasiano, didactico ou symbolista, philosophico ou scientista, qualquer que seja a etiqueta ou o rotulo com que a critica os classifique, todos os que conseguiram ou conseguem commover e transmittir as suas emoções de natureza e de coração, todos, todos, todos são e serão lyricos pela expressão musical dos sentimentos, pela harmonia dos rithmos, pelo ideal de belleza e de perfeição, porque sabem dar á vida esse não sei que gosto divino e indefinivel.

Se como Orpheu não têm hoje, com o tanger melodioso da lyra, o dom de edificar cidades, fascinam ainda e embevecem as almas, embellezando a Natureza, tecendo illusões, fiando scismas, tramando sonhos, urdindo fantasias, exaltando a dôr, soffrendo as duvidas, rindo com riso alado e chorando dobradas lagrimas deante das alegrias e as miserias do mundo.

E aqui termino com as claras palavras de Eça de Queiroz:

"Uma nação só vive, porque pensa. A força e a riqueza não bastam para provar que uma nação vive duma vida que mereça ser glorificada na historia, como rijos musculos num corpo e ouro farto numa bolsa não bastam para que um homem honre em si a humanidade. Um reino d'Africa com guerreiros incontaveis nas suas aringas e incontaveis diamantes nas suas collinas, será sempre uma terra bravia e morta, que, para lucro da Civilisação, os civilisados pesam e retalham tão desassombradamente como se sangra e se corta a rez bruta para nutrir o animal pensante.

Se uma nação, portanto, só tem superioridade porque tem pensamento, todo aquelle que venha revelar na nossa patria um novo homem de original pensar concorre patrioticamente para lhe augmentar a unica grandeza que a tornará respeitada, a unica belleza que a tornará amada; e é como quem aos seus templos juntasse mais um sacrario ou sobre as suas muralhas erguesse mais um castello. Michelet escrevia numa carta alludindo a Anthero do Quental: "Se em Portugal restam quatro ou cinco homens como o cantor das "Odes Modernas", Portugal continua a ser um grande paiz vivo."

Um livro de versos póde sublimemente mostrar que a alma de uma nação vive ainda pelo seu Genio Poetico."

A esse respeito, Senhores, não vejo por que devamos ficar amargurados. Um paiz que conta entre os seus filhos poetas como os que temos, é um organismo vivo, uma força em acção, é mais do que uma esperança, porque é já uma certeza.

A.B. 40

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