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A MULHER NA LITTERATURA BRASILEIRA

CONFERENCIA REALISADA EM 23 DE DEZEMBRO DE 1915, PELO SR. REIS CARVALHO

SUMMARIO: Origem e razão desta conferencia.

Verdadeiro objecto e reducção do thema escolhido. As heroinas da selva: Lindoya Paraguassú Moema Iracema. da senzala: Maria

Cecilia

Isaura.

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menos celebres.

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Os vultos

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Marilia Outras creações

Personagens do campo e figuras de salão:
Innocencia

Diva

Senhora.

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O amor, a paixão conjugal, caracter commum de todos os grandes typos femininos da litteratura brasileira. Hypothese explicativa da carencia de A mulher brasileira glorificada nos doze vultos legendarios

outros caracteres.

da nossa litteratura.

ORIGEM E RAZÃO DESTA CONFERENCIA

Minhas senhoras, meus senhores.

Entendeu o illustre Director desta casa que figurassemos este anno entre os conferentes da Bibliotheca Nacional.

Por não pertencermos aos circulos officiaes da nossa intellectualidade, parecia-nos que deveramos estar excluidos de falar neste recinto.

Entretanto, o dedicado chefe desta util e nunca assás louvada instituição, a que elle tem consagrado o melhor do seu incansavel esforço, julgou que esse não era motivo para excluir-nos; acreditamos mesmo que foi a razão principal da nossa escolha. Pareceu-lhe justo que das conferencias da Bibliotheca participasse quem vive fóra das associações e grupos literarios, quem não possue titulos academicos e nem professa nos institutos mais ou menos mantidos, ou apoiados pelo Estado. Certo a escolha melhor fôra, se outrem, nas mesmas condições, tivesse sido o eleito, dizemol-o sem modestia. Mas, já que tal se não deu, só nos resta esforçarnos por corresponder á confiança immerecida.

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Accedendo ao convite do eminente bibliothecario, escolhemos como assumpto da conferencia que nos fôra pedida O culto dos grandes homens. Era-nos grato versar em synthese o que com certa minucia tinhamos tratado em artigos dispersos. Demais, preoccupado com leituras e escriptos sobre o caso palpitante da época o crime internacional da Grande Guerra desejavamos discorrer aqui sobre materia de que já tivessemos estudos feitos. Mas nos enganámos. Segundo o programma regulamentar, a conferencia devera ser sobre litteratura e litteratura brasileira. A' vista disso indicámos para objecto da dissertação: O theatro no Brasil. Nova rejeição. Essa these havia sido tratada o anno passado. Foi

então que nos occorreu o thema actual, finalmente acceito: A mulher na litteratura brasileira...

VERDADEIRO OBJECTO E REDUCÇÃO DO THEMA ESCOLHIDO

Tratar da mulher na litteratura brasileira é um problema duplo. Ou lhe apreciamos as obras litterarias, ou a estudamos como personagem. Autora, ou heroina, é assim que se nos apresenta em a nossa e nas litteraturas extrangeiras. Mas os autores femininos são raros e as heroinas abundantes.

Entre nós a regra não falha. Na pleiade selecta de escriptores consagrados, poucas são as figuras femininas.

Essa escassez não depõe contra a intelligencia da mulher; origina-se apenas da natureza normal do seu espirito e das contingencias de sua situação social. Tanto assim que, excepcionalmente dotada, e posta em condições de produzir como o homem, a mulher com elle rivaliza, se não o excede. Para não sahir do nosso meio nem do nosso tempo, illustramos a affirmativa com o nome laureado de D. Julia Lopes de Almeida. Sabem todos o lugar proeminente que occupa essa escriptora entre os romancistas brasileiros de todas as épocas.

Não nos propomos porém a discorrer aqui sobre a mulher-autora e sim sobre a mulher-personagem.

O equivoco do thema está dissipado.

E' a sua primeira reducção.

Para tratal-o mesmo assim reduzido, deveramos analysar todas as brasileiras obras litterarias, destacando-lhes um a um os typos femininos. Esse trabalho seria exhaustivo, exigiria um tempo immenso; em vez de uma conferencia fariamos um livro.

Nova reducção se torna pois necessaria. E é escolher no catalogo dos livros, os mais celebres, aquelles que já receberam a consagração popular e erudita, aquelles cujos autores a morte transmittio á immortalidade.

Ainda não basta, no emtanto, essa selecção.

Entre as producções mais notaveis da litteratura brasileira, muitas ha em que as heroinas figuram sem nome, não têm caracter distinctivo, não se conservam typos definidos na tradição litteraria, e outras em que as personagens centraes não são idealizações da mulher.

Os Cantos de Gonçalves Dias e o Atheneu de Raul Pompéa são especimens do genero.

Assim restringe-se ainda mais o campo da nossa exploração.

Temos de versar livros celebres da nossa litteratura, mas só aquelles em que dominam individualidades femininas representativas, ou porque ellas o são de facto aos olhos do psychologo, ou porque o povo as sagrou como taes.

Para coordenar o summario estudo, começamos dando ao termo litteratura o sentido restricto de arte da palavra, considerando-o synonimo de poesia. O que temos de apreciar é só o conjuncto das producções em verso e em prosa, distribuidas nos tres generos classicos: a poesia lyrica, a poesia epica e a poesia dramatica, incluindo nessa trilogia o romance, que é ao mesmo tempo lyra, epopéa e drama.

Em resumo, o nosso escopo é assignalar os perfis de mulher que na litteratura brasileira conseguiram a immortalidade das suas emulas da litteratura universal.

Quaes são essas figuras immortaes ?

Respondamol-o immediatamente: Lindoya, Paraguassu', Moema e Iracema

typos da brasileira aborigene; Maria e Isaura vultos da senzala; Marilia, Cecilia, Moreninha, Innocencia, Diva e Senhora damas da sociedade, campe

sina, ou urbana, personagens de interior, ou figuras de salão.

Certo, além destas, ha em a nossa litteratura muitos e variados typos femininos. Basta lembrar os contos magnificos de Machado de Assis, onde se esculpem com cinzel de mestre os mais variados e interessantes retratos de mulher, onde a alma feminina é esquadrinhada nos seus mais intimos refolhos com a arte delicada e meticulosa de um miniaturista da idade média. Mas as heroinas de Machado de Assis não se incorporaram ás tradições sociaes. Não são typos representativos que se tenham popularizado. O simples enunciado de seus nomes e do nome do seu creador não suggere a individualidade psychica a que se quer alludir. Ouvindo falar, por exemplo, da Eugenia de Machado de Assis, uma das heroinas dos Contos fluminenses, ninguem representa o typo correspondente como se referisse á Moreninha de Macedo ou á Diva de Alencar. Num estudo acabado, numa critica litteraria synthetica, mas completa, essas considerações seriam descabidas, e tratando das idealizações da mulher em nossa litteratura, teriam lugar de honra as creações de Machado de Assis. Aqui não.

Deixaremos tambem em proposital olvido as mulheres que, estudadas embora com rara mestria, desenhadas com arte e naturalidade, representam sómente a degradação feminina; são casos de pathologia social como Luciola, Anna Ritta, Magdalena e Lenita, todas typos anormaes de quatro romances de sensação: Luciola, de José de Alencar; 0 mulato e O homem, de Aluizio Azevedo, e A Carne, de Julio Ribeiro.

As eleitas da nossa conferencia serão apenas as heroinas depuradas no crysol do altruismo; as creações da poesia que exalta e não abate os nossos melhores sentimentos; as figuras da arte que commove e edifica.

Assim, feitas essas exclusões necessarias que a natureza desta palestra explica e justifica, vejamos em imagens cinematographicas as grandes heroinas da nossa litteratura.

AS HEROINAS DA SELVA

Primeiro cinematographemos as personagens da selva.

Certo são typos psychologicamente falsos. A india, que não envolveu no Occidente, que não experimentou o influxo da civilização successivamente theocratica, greco-romana, catholico-feudal, que não atravessou os periodos criticos da Renascença, da Reforma e da Revolução, não podia, não póde ter os sentimentos nem realizar a conducta da mulher occidental.

A viuvez eterna de Lindoya, o amor conjugal de Paraguassu', o ciume heroico de Moema, o santo sacrificio de Iracema, são todos actos complexos, peculiares á alma feminina retemperada pela evolução occidental, especialmente pela transição medieval e pelo periodo revolucionario.

Mas se aprofundarmos a observação e conhecermos melhor a alma indiana, veremos que se reduz a proporção de falsidade daquelles vultos da selva.

Essencialmente sentimentaes pela natureza de seu estado social, que é o fetichismo, a mulher indiana se não realiza nenhuma das figuras imaginadas pela poesia brasileira, todavia não é de todo impropria a inspirar essas idealizações. Costumada a animar a natureza inteira, a dar vida a tudo que a rodeia, a achar em os homens como nos animaes, nas plantas como nas cousas, objecto de apego ou de aversão, mas sempre em alvo affectivo, vivendo sobretudo de emoções, a india não infringe as leis da natureza humana, não contraria a psychologia positiva, se tornando capaz de heroismos do coração.

Demais, a poesia que exalta a nossa natureza superior, que edifica a nossa alma, é o real idealizado para melhor. E se a alma selvagem é antes rude do que barbara, se possue o germen da affectividade tão apparente no seu ingenuo fetichismo, por que não tomar esse germen e desenvolvel-o pela imaginação, transformando o grosseiro modelo objectivo no delicado typo subjectivo? Por que não lapidar a pedra bruta e a rocha informe transformar em estatua viva?

Não erraram tanto os mestres do indianismo. As suas heroinas são figuras humanas idealizadas. Viverão mais do que as creações repugnantes do realismo pornographico.

As quatro grandes personagens da musa indianista são almas de mulheres occidentaes encarnadas em corpos de mulheres selvagens. Embora ! São figuras immortaes.

LINDOYA

Lindoya é a esposa fiel além da morte; a viuva eterna.

Mulher de Cacambo, indio valente e generoso, destinam-n'a ao leito de Baldetta, depois que ao marido covardes assassinam. O festim das nupcias prepara-se. Falta só a india viuva. E a misera não vem. Antes a morte que a deshonra. Serpe venenosa lhe fere o tronco e a vida se lhe esvae inteira.

Os olhos, em que amor reinara um dia,
Cheios de morte; e muda aquella lingua,
Que a surdo vento e aos écos tantas vezes
Contou a larga historia de seus males.

E' por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pallido semblante,

Um não sei quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros enternece...
Tanto era bella no seu rosto a morte !...

Esta figura sympathica de um antipathico poema, esta heroina da selva brasileira suggere duas mulheres historicas, ambas celebres mas antagonicamente famosas.

Como Cleopatra, a amante sensual de amantes varios, ella entrega ao reptil viscoso, ao virulento ophidio, o corpo amado por Cacambo.

Como Dido, a fiel esposa de Sicheu, busca na morte unir-se de novo ao esposo amado e fugir á traição da memoria querida.

Lindoya recorda ainda outra celebre figura feminina. Faz-nos lembrar da Laura, de Petrarca.

Não é que haja entre ellas similhanças psychicas, nem algum aspecto commum na vida de ambas, mas porque o cantor de Lindoya repetio á sua heroina o mesmo verso com que o cantor de Laura encerra um dos hymnos á sua bem! amada.

O Uraguay de Basilio da Gama reproduz quatro seculos depois o Rimario de Petrarca.

Morte bella parea nel suo bel viso,

dissera de Laura o lyrico italiano.

Tanto era bella no seu rosto a morte,

diz de Lindoya o epico brasileiro.

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