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fôra sorprehendida e perseguida pelo senhor. Debalde repellio a seducção do satyro, gritou, correu...

Na douda

Corrida,

Vencida,

Perdida,

Quem lhe ha de salvar ?..

Parou... Volveu em torno os olhos assombrados...
Ninguem! A solidão pejava os descampados !...
Restava inda um segundo... um só p'ra se salvar;
Então reunio as forças, ao céo ergueu o olhar...
E do peito arrancou um pavoroso grito,

Que foi bater em cheio ás portas do infinito!

Ninguem! Ninguem the acóde... Ai! só de monte em monte
Seu grito ouvio morrer na extrema do horizonte !...

Depois a solidão ainda mais calada

Na mortalha envolveu a serra descampada !

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Mas não era essa a só desgraça de Maria. Magua maior a compungia. E' que o autor da infamia era o irmão paterno do eleito de seu coração. Lucas era filho adulterino de uma escrava com o pai do seductor. A desventura redobrava. Assim não quiz voltar á cabana e receber á hora costumada a visita do bemamado. Resolveu morrer. E só numa fragil canôa atirou-se á corrente do rio, poz-se a boiar á tôa na triumphante caudal do S. Francisco.

Lucas ignora tudo. Só o sorprehende a fuga de Maria.

Como o cão elle em torno o ar aspira,

Depois se orientou;

Fareja as hervas... descobrio a pista

E rapido marchou.

Arroja-se á corrente; nada rapido e com furia; galga emfim o fragil lenho.

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A infeliz amorosa narra-lhe então as verdades crueis: a scena da seducção, a filiação de Lucas, o nome do seductor, e recorda-lhe o juramento que, criança, fizera o bastardo perante a mãi, que morria:

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E' a horrivel realidade em toda sua hediondez. A vida se lhes torna um pesadelo perenne. O suicidio porá termo á angustia dos dous martyres. Escravos, encontrarão na morte a liberdade. Seu tumulo será

A cachoeira! Paulo Affonso! O abysmo!

A briga colossal dos elementos !

As garras do Centauro em paroxismo

Raspando os flancos dos parceis sangrentos.

Mas Lucas, como que vacilla diante do transe fatal. Reconhece a voragem. Chama de infame a morte. Maria, não. Como num extase de alucinada amorosa, o scenario tragico se lhe afigura uma visão paradisiaca.

Veste-me o setim branco do noivado...

Roupas alvas de prata... alventes dobras...
Veste-me!... Eu aqui estou...

Supplica a joven martyr ao afflicto amante.

- Já na proa espadana, salta a espuma, elle lhe responde.

São as flores gentis da laranjeira

Que o pego vem nos dar... acode ella,

Oh! nevoa! Eu amo teu sendal de gase !...
Abram-se as ondas como virgens louras,

Para a esposa passar !...

E o coloquio continua na canoa phantastica. A cachoeira, o tumulo escolhido,

eil-a á vista já.

A celeste Africana, a virgem-noite,

Cobria as faces... Gotta a gotta os astros
Cahiam-lhe das mãos no peito seu...

Um beijo infindo suspirou nos ares...

...

A canóa rolava !... Abriu-se a um tempo
O precipicio!... e o céo !...

Maria é uma figura de martyr da escravidão africana no Brasil. A sua historia epica é a synthese idealizada das historias reaes de milhares de virgens

escravas.

Heroina da senzala, ella recorda tambem o martyrio da sua irmã da selva, a terna e misera Lindoya. O suicidio lhes foi o refugio libertador; buscaram com a morte não sobreviver ao amor que tinha sido a vida de ambas.

Mas a individualidade de Maria é mais natural e mais poetica. Negra, nascida no Brasil, já em contacto com a civilização occidental, or seus sentimentos, que são os da raça affectiva por excellencia, estão mais desprendidos da rudeza primitiva, que define a sentimentalidade fetichica do selvagem. Dahi o coração de Maria ser mais propicio que o de Lindoya, á idealização esthetica dos rasgos de excepcional altruismo. A eleita de Lucas é mais real que a esposa de Cacambo. Maria viverá mais do que Lindoya.

-ISAURA

A creação de Castro Alves nos leva, por um declive, á de Bernardo Guimarães; Maria suggere Isaura, a figura tragica da escrava bahiana, a heroina romanesca da escrava fluminense.

Isaura, como Maria, é martyr da escravidão; seu martyrio, porém, acaba num termo feliz. E' a vida em todo o seu fulgor, é a ventura suprema de amar e ser amada que lhe resgata e faz esquecer os dias dolorosos do martyrio.

Embora tratada com especial carinho, como irmã da senhora, que a educara com relativo esmero, Isaura era submissa e humilde.

"Conscia de sua condição, é assim que a descreve o romancista, Isaura procurava ser humilde com qualquer outra escrava, porque, a despeito de sua rara belleza e dos dotes de seu espirito, os fumos da vaidade não lhe entumeciam o coração, nem turvavam-lhe a luz de seu natural bom senso. Não obstante, porém, toda esta modestia e humildade, transluzia-lhe, mesmo a despeito della, no olhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade e orgulho nativo, proveniente talvez da consciencia de sua superioridade, e ella sem o querer sobresahia entre as outras, bella e donosa, pela correcção e nobreza dos traços physionomicos e por certa distincção nos gestos e ademanes. Ninguem diria que era uma escrava, que trabalhava entre as companheiras, e a tomaria antes por uma senhora moça, que por um desenfado fiava entre as escravas. Parecia a garça real, alçando o collo garboso e altaneiro, entre uma chusma de passaros vulgares".

A sua belleza e o seu espirito estimulam o appetite de adoradores lascivos e brutaes. Todos a queriam para gozal-a; mas um sobretudo a conservava como presa destinada a saciar-lhe a gula. Era o senhor. Era Leoncio, o luxurioso marido de Malvina, a virtuosa e boa senhora, que tanto tempo a tratara como irmã.

E a vida de Isaura, que era incapaz de um acto indigno, se torna um perenne martyrio.

Abandonada pela senhora, que sorprehendeu as confissões adulterinas do esposo, invejada das companheiras, odiada pelos outros captivos, desejosos de a verem perseguida pelo senhor, foi afastada do lar e atirada ao rancho das outras escravas. Trabalha na senzala, ouvindo motejos e improperios, ameaças e insultos. E o senhor, indignado porque a virgem escrava lhe repelle a seducção, requinta a maldade, aterroriza-a com o supplicio do tronco...

Em meio de todas as dôres, apezar dos inauditos soffrimentos de corpo e de espirito, Isaura conservou immaculada a sua honra de virgem.

E quando, para fugir á sanha dos algozes, disfarçou-se na Elvira dos salões e encantou pela belleza e pelo talento, a sociedade elegante

manteve sempre a

mesma linha de irreprehensivel conducta. Até no momento do grande opprobrio,

quando em pleno baile a descobrem como escrava fugida, Isaura é grande no seu infortunio.

E' através dessas torturas, entre as vicissitudes de uma existencia dolorosa. que amor lhe nasce pelo mancebo que a teria de salvar do ignominioso captiveiro. Mas cala o affecto, não n-o revela pela sua condição de misera escrava, e resigna-se afinal á sua sorte, ao saber a falsa noticia do casamento daquelle a quem ama em segredo.

O destino, porém, lhe é propicio. Desfaz-se toda a intriga urdida pelo senhor libidinoso e perverso. Alvaro, o salvador que se enamorara de Isaura sob o disfarce de Elvira, rico e generoso, compra aos credores todas as dividas de Leoncio e quando este, executando um plano sinistro, vai entregar Isaura a um marido nominal e complacente, surge-lhe a figura do mancebo vingador. O verdugo de Isaura, arruinado, assiste á transmissão forçada dos seus bens, inclusive a escravatura, para as mãos do rival, tornado implacavel credor. O drama acaba com o suicidio desesperado de Leoncio e o casamento de Alvaro e Isaura. O martyrio findara. A escrava passava a senhora.

Isaura, qualquer que seja o exagero sentimental desse typo feminino, é uma figura real na sua época. Os tristes annaes da escravidão africana no Brasil estão cheios de individualidades analogas. A educação esmerada que davam algumas senhoras a filhas de escravas dedicadas, especialmente daquellas que as tinham aleitado, dessas conhecidas pelc amoroso nome de mães-pretas; a paixão libidinosa dos senhores pelas mucamas eleitas; e o martyrio de muitas que repelliam a libidinagem e sem querer provocavam o ciume das amas offendidas tudo isso eram factos frequentes nos tempos ominosos da escravidão.

Isaura personifica um desses dramas desenrolados entre o rancho dos escravos e a casa dos senhores, vivido na senzala e na alcova.

E o desenlace do drama é como um symbolo prophetico. A escravidão morre com o senhor cruel e devasso; e a redempção da raça opprimida surge com a união do novo senhor á antiga escrava, libertada pelo amor.

No seu martyrio, a heroina de Bernardo Guimarães encarna a instituição nefanda do passado, mas na sua ventura annuncia já os aureos dias da abolição. Isaura symboliza ao mesmo tempo a escravidão e a liberdade.

PERSONAGENS DO CAMPO E FIGURAS DE SALÃO

Passemos da senzala ao salão; das figuras tragicas ou dramaticas, aos vul. tos lyricos ou romanescos; das domesticas humildes ás damas de sociedade; de Maria e Isaura, a Marilia, Cecilia, Moreninha, Innocencia, Diva e Senhora.

São personagens do campo como Innocencia ou figuras de salão como Diva e Senhora.

E' a galeria das creações femininas verdadeiramente brasileiras. São todas ellas damas da sociedade occidental vivendo no sertão ou na cidade, habitando fazendas do interior ou casas e palacetes da capital.

O seu typo ethnico resume o concurso fundamental das tres raças do nosso povo, com a preponderancia do elemento luso que é muitas vezes unico e exclusivo, como em Marilia e Cecilia.

São senhoras, ou melhor senhorinhas da sociedade burgueza, ou mais ou menos aristocrata; algumas fidalgas, senão pelo sangue, pela educação e pela fortuna. Não estamos mais na floresta, ou na senzala, na taba, ou no rancho, mas nas salas e salões.

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Os typos femininos desse grupo, apezar da inverosimilhança, do exaggero de idealização de alguns, são mais familiares á nossa imaginação contemporanea. Estão ao nosso lado senão objectiva, ao menos subjectivamente. Todas ellas são heroinas da sociedade que vive em nós, ou vive comnosco. Reaes ou imaginarias afinam-se pelo nosso sentir de civilizados que não se conformam mais a viver livres nas florestas como o indio, ou escravos nas senzalas como o negro.

Façamos desfilar em rapido cortejo essas seis famosas creações do genio

poetico brasileiro.

MARILIA

Os teus olhos espalham luz divina,
A quem a luz do sol em vão se atreve:
Papoula, ou rosa delicada e fina,
Te cobre as faces que são côr de neve.
Os teus cabellos são uns fios d'ouro,
Teu lindo corpo balsamos vapora...
Ah! não, não fez o céo, gentil pas ora,
Para gloria do amor igual thesouro.

Leve-me a sementeira muito embora
O rio sobre os campos levantado; ;
Acabe, acabe a peste matadora,

Sem deixar uma vez, o nedio gado.

Já destes bens, Marilia, não precizo...

Nem me cega a paixão que o mundo arrasta:

Para viver feliz, Marilia, basta

Que os olhos movas e me dês um riso.

Irás a divertir-te na floresta,

Sustentada, Marilia, no meu braço;

Ahi descansarei a quente sésta,

Dormindo um leve somno em teu regaço.
Emquanto a luta jogam os pastores.
E emparelhadas correm nas campinas,
Toucarei teus cabellos de boninas,
Nos troncos gravarei os teus louvores.

Depois que nos ferir a mão da morte,
Ou seja neste monte, ou noutra serra,
Nossos corpos terão, terão a sorte,
De consumir os dous a mesma terra.

Na campa rodeada de cyprestes,

Lerão estas palavras os pastores:

"Quem quizer ser feliz nos seus amores

"Siga os exemplos que nos deram estes".

E' assim que Gonzaga, nos versos iniciaes das suas lyras, resume os encantos de Marilia, as provas de affecto que lhe consagra e a natureza da sua paixão, ao mesmo tempo ideal e real.

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