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que obtivesse depois o tal emprego per outros meios, que não chegaram á noticia dos Escriptores da sua vida.

Cinco annos se demorou em Macau; e presume-se teve tambem alguma assistencia em Tidore, e Ternate; pois descreve, como testimunha ocular, as situações, e cousas notaveis d'essas ilhas, em o canto X dos Lusiadas; poema que elle bastantemente adiantou em todo aquelle tempo.

É tradição constante que passava muitas horas a trabalhar n' essa composição em uma gruta, a qual inda hoje se mostra em Macau, e é denominada: Gruta de Camões.

Ao fim d'esse periodo embarcou para Goa, onde chegou no anno de 1561, sendo vice-rei D. Constantino de Bragança, o qual succedera no governo a Pedro Barreto, em o dia 3 de septembro de 1558. Em obsequio d'esse fidalgo, que lhe mostrava affecto, compoz o nosso Epico as elegantes oitavas que começam

Como nos vossos hombros tam constantes, etc.

Em as quaes celebra os heroicos feitos de seus progenitores, e as acertadas acções do seu governo. Mas, durando esse governo poucos mezes (pois findou no de septembro d'aquelle anno 1561, em que lhe succedeu D. Francisco Coutinho, conde de Redondo) experimentou logo o Poeta diversa fortuna; por quanto, imputando-se-lhe algumas culpas na administração do cargo, que exercitara em Macau, foi outra vez preso per ordem do novo vice-rei.

Havia ja purgado as pretendidas culpas, eis que um tal Miguel Rodrigues Coutinho, alcunhado Fios-seccos, por certa divida o mandou embargar no carcere, do qual escreveu ao conde vice-rei (estando este de viajem) o seguinte faceto memorial:

Que diabo ha tam damnado,

Que não tema a cutilada
Dos Fios-seccos da espada

Do fero Miguel armado?

Pois se tanto um golpe seu

Sôa na infernal cadeia,
(De que o demonio arreceia)
Como não fugirei eu?

Com razão lhe fugiria,

Se contra elle, e contra tudo,
Não tivesse um forte escudo
So em Vossa Senhoria.

Por tanto, senhor, proveja,
(Pois me tem ao remo atado)
Que antes que seja embarcado,
Eu desembargado seja.

Pôsto em liberdade, volveu Camões ao exercicio das armas, sem todavia abandonar o das Musas; por quanto, n' esse mesmo tempo compoz algumas de suas Rhymas, e terminou Os Lusiadas, no intuito de offerecer essa immortal epopea ao seu joven monarcha; para cujo fim resolveu trasladar-se a Lisboa.

Poz-lhe atalho porêm a essa determinação Francisco Barreto; o qual, com o cargo de capitão, passava a Sofala; instando-lhe fosse em sua companhia, e offerecendo-lhe por emprestimo duzentos cruzados para as provisões da viajem; o que elle acceitou, por intender que assim conseguiria mais facilmente o seu transporte para o reino, aguardando alli ensejo de embarcação.

Correspondeu-lhe, n'esta parte, o effeito á esperança; pois, a poucos mezes d'estada em Sofala, arribou áquelle porto (de passagem para Lisboa) a nau denominada Santa Fé; e n'ella Heitor da Silveira, Duarte de Abreu, e outros cavalheiros seus confidentes; os quaes brindaram o nosso Poeta com a conveniencia d'embarcação gratuita. Presentiu esse designio Pedro Barreto; e, para impedil-o, interpoz a restituição dos duzentos cruzados; que, por serem ja gastos, difficultavam a partida; mas congregando-se os referidos cavalheiros, satisfizeram a dívida, e resgataram o devedor. Avultava tambem entre elles o nosso célebre historiador Diogo de Couto; o qual, n'essa occasião, contrahiu familiaridade com Camões; e este, após haverlhe mostrado o poema dos Lusiadas, incitou-lhe o desejo d' illustral-o com algumas annotações: o que o mesmo Couto executou depois; mas esse trabalho não sahiu a publico.

Chegou finalmente o nosso Poeta a Lisboa, no anno de 1569, governando ja el-rei D. Sebastião, e estando esta cidade afflictissima com um grande contagio; o que foi motivo

de Camões dilatar a publicação do sobredito poema quasi tres annos; pois so no de 1571, a 4 de septembro, obteve o privilegio real; e, no seguinte 1572, se acabou de imprimir com tanta acceitação do mundo litterario que, no mesmo anno, se reiterou a edição.

Passou depois o restante de sua vida, isto é, espaço de sete annos, em tal extremo de miseria, que lhe era necessario mandar o seu escravo Antonio de noite a pedir esmola, para remediar, no preciso sustento, o a que não podia supprir a limitada somma de quinze mil reis annuaes, de que el-rei lhe fez mercê polos seus serviços, com obrigação de residir na corte.

M. Raynouard, na sua ode a Camões, traduzida per Francisco Manuel, celebrou, na seguinte estrophe, a fidelidade d'esse bonissimo escravo:

Se o caro nome teu não poude o Vate

Illustrar no seu metro,

No meu te hei por segura alta lembrança
De gran' renome, Antonio.
Sabe, que esse sublime sacrificio

Tem de achar nos meus hymnos

Ecco fiel, oh servidor magnanimo!
Nos devolvendos seculos;
Pregoando, que ennobrece esse teu zelo

Da mendiguez a opprobrio.

E Antonio Ribeiro dos Sanctos, na sua ode a Camões :

O sublime Cantor, que sobre as azas

Do sagrado Poema leva aos astros

O Gama illustre, e a lusitana empresa

Dos gangeticos mares;

Dizei, qual digna recompensa, oh Musas!
Teve o seu canto, de que se honra Appollo,
Que a tanto feito, a tanto heroe valente

Deu immortal memoria?

Do rico imperio da gemmante Aurora,
Onde soltou aos ceos a voz divina,
Nem ouro, nem fulgente pedraria
Lhe deu a sorte avara.

De seus illustres meritos sublimes,

Que as estranhas nações tanto invejaram,

So teve em premio, e galardão sobejo,

A hórrida pobreza.

Tu, escravo de Java, oh so amigo

Que o ceo lhe dera em tanta desventura!
Entre as trevas da noite mendigavas

Seu misero sustento.

D'ahi procedia o motivo de viver continuamente retirado; e isso de fórma que, á reserva d'alguns doctos religiosos do convento de san' Domingos (onde tambem ía algumas vezes ouvir a lição de theologia moral) ninguem mais o tractava.

Foi então que um fidalgo chamado Rui Dias da Camara, veio ao pobre quarto de Camões queixar-se de que tendo-lhe elle Camões promettido uma versão dos salmos penitenciaes, não acabava de a fazer, sendo tam grande poeta; ao que este respondeu: « Quando eu fiz aquelles cantos, era mancebo, farto, namorado, e querido de muitos amigos, e damas; o que me dava calor poetico agora não tenho espiritu, nem contentamento pera nada: aḥi está o meu Jau, que me pede duas moedas (de cobre) pera carvão, e eu não as tenho pera lh'as dar. »

Concorreu outro-sim a lamentavel catastrophe da patria (e Camões amava esta excessivamente, succedida n'essa quadra com a perda d'el-rei D. Sebastião em Africa) a augmentar seus desgostos; os quaes lhe aggravaram a molestia, que ja de muitos dias experimentava; thé que lhe sobreveio a ultima enfermidade; em a qual (talvez por ver-se destituido de meios para os remedios) consta escrevera n' uma carta as seguintes linhas :

«Quem ouviu dizer que em tam pequeno theatro, como o de um pobre leito, quizesse a fortuna representar tam grandes desventuras? E eu, como se ellas não bastassem, me ponho ainda da sua parte; porque procurar resistir a tantos males, pareceria especie de desavergonhamento. >>

E n'outra escripta, pouco antes de morrer, dizíą :

«Emfim acabarei a vida, e verão todos que fui tam affeiçoado á minha patria, que não somente me contentei de morrer n'ella, mas de morrer com ella. »

Essas lastimosas queixas do nosso infelicissimo Epico, mo

veram o judicioso Francisco Dias Gomes a traçar as expressões que eu aqui repito:

« Sem vergonha o não digo, é tam desacreditado o conceito que as nações estrangeiras fazem de nossas luzes, que nos reputam quasi barbaros: eu não duvido que haja n' isto excesso; mas infelizmente vemos, per casos de publica notoriedade, que a sua opinião não deixa de ter fundamento. Em primeiro logar vemos que os maiores homens, que mais honraram a nação com escriptos sublimes, não so não foram premiados, mas publicamente vexados. Camões, o maior poeta da Hespanha, o unico a quem o grande Tasso temia na Europa (como elle publicamente confessava); Camões, esse raro Ingenho, de quem a lingua portugueza recebeu todas as graças, força, e harmonia, de que tanto se abona; e que apezar da mediocridade dos talentos dos que modernamente a tractam, não deixa de se manifestar visivelmente; Camões emfim, esse grande homem, sem o qual nào haveria poesia portugueza, a que miserias se não viu reduzido em todo o tempo que viveu? Sendo elle um dos homens mais valerosos, que passaram á India; o qual, por descanso das armas, compunha obras immortaes, nunca lhe foi possivel achar um asylo onde repousasse; e, se não fosse o auxilio de um pobre Indio, em quem a força da mais pura amizade fez tanta impressão, que deixando as delicias da sua terra, o accompanhou athé á morte, terminaria certamente com mais brevidade uma vida, de que tanta gloria resultou á sua patria; que tam insensivel foi ao merecimento do mais illustre de todos os seus filhos. Sabem todos que das esmolas, que aquelle amavel Indio grangeiava, quando não tinha trabalho honesto, em que ganhar, se sustentava o grande Camões, tam digno dos maiores applausos, tam celebrado dos sabios da Europa; o grande Camões emfim, acabou sua tam misera e cansada vida na mais extrema, na mais infeliz miseria. >>

Camões morreu em Lisboa no anno de 1579, em idade de 55 annos, por haver nascido no de 1524. Deu-se-lhe sepultura ao lado esquerdo da entrada da porta do convento de sancta Anna, de religiosas Franciscanas. Poucos annos depois (foi no de 1595) D. Gonçalo Coutinho lhe deu nova sepultura no meio da igreja, mandando-lhe gravar na campa esta inscripção :

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