E' preciso que a datar do terceiro centenario do poema preste-se-lhe mais alguma homenagem, ou antes um respeito universal como o de que gozaram durante a antiguidade os poemas homericos. Qualquer que seja o actual eclypse, o astro se desprenderá da sombra e tomará ainda algum dia sua posição no horisonte. Não é só, porém, o poeta que se deve conhecer, é tambem o homem. Camões, e isso ver-se-ha melhor ao ler as presentes notas, é a expressão genuina de seu paiz. Pessoalmente bom, amavel, dedicado, cheio de desinteresse, heroico, elle toma com suas desgraças um grande vulto e proporções lendarias. Cabe-lhe a missão de cantar a gloria portugueza na vespera de Alcacer, e a ventura de não sobreviver á patria! naufrago nas aguas do Mékong, o que trata de salvar das ondas é seu livro, e com elle a epopea da navegação! Infeliz e pobre, mendiga depois de ter dotado o paiz com o maior monumento que elle possue! De todos esses accidentes e esses infortunios formou-se a legenda do poeta. Respeitarei tanto quanto fôr possivel a figura historica e a tradição popular. Um Camões pobre, proscripto, mendigando nas pontesde Lisboa pela mão de uma escrava, seria um remorso para a geração de 1570; para a de hoje, porém, é um exemplo vivo que a fará honrar o genio infeliz. Não toucarei assim nas roupas de marmore em que a posteridade envolveu a estatua do poeta, nem tratarei de quebrar o prestigio seductor de suas desgraças. A tradição é a historia. Seria uma profanação mentir a ambas, só para seguir os passos de uma opinião que quer destruir todos os cultos da humanidade, decompôr as lendas, mostrar os lados pequenos dos grandes homens. Como se um mytho não fosse a resultante de um longo trabalho de idealisação! e como se a humanidade não tivesse querido, formando-os, crear modelos inalteraveis para progresso de todos! Este livro não tem valor, como disse antes, senão como notas de minhas impressões, e esse valor é tambem pessoal. Tratei de deixar de lado o estudo bibliogphico, cuidadosamente feito pelo Sr. I. F. da Silva; o estudo litterario, fil-o unicamente com os Lusiadas, desconhecendo quasi tudo que sobre elles se tem publicado; é, como se vê, um livro escripto com minhas proprias impressões. Como um mergulhador, que, no fundo do oceano, não precisa de ler o que sobre elle se escreveu para sentir-se deslumbrado por tantas riquezas e por tão novos quadros, assim não pensei que me fosse necessario o soccorro de outros para sentir e comprehender as innumeras bellezas do poema de Camões. Exprimir o que senti foi-me possivel, porque não precisei de fallar a linguagem do poeta. Escolhendo os Lusiadas para objecto de meus estudos, acredito que tomei um assumpto nacional. Os Lusíadas são a obra prima da litteratura portugueza, que é a nossa. Varios ensaios, e alguns de grande merecimento, fizeram-se entre nós com o intuito de dar-nos uma litteratura propria, mas ella ainda não existe. De duas sortes foram os trabalhos, que se conhecem, feitos com essa intenção. De uns o assumpto era a vida de nossos indigenas, de outros era o estado actual de nossa sociedade. Uma litteratura, inspirada pela vida errante das tribus primitivas, que se servisse amplamente de seu rude vocabulario, que não nos descrevesse senão os seus costumes, seria bem uma litteratura tupy ou guarany, mas não a brazileira. A poesia póde idealisar o caracter, o coração, as guerras, a civilisação até d'esses ferozes habitantes de nossos sertões; mas a poesia, que se impuzer essa aliás bella missão, será uma poesia phantastica, sem direito a ser nacional. A sociedade brazileira, da qual a litteratura deve ser a expressão, é exactamente aquella que substituiu no gozo d'este paiz os seus habitantes primitivos. Tornarmo-nos nós os cantores d'essa vida, que só tem poesia para aquelle que não acceita plenamente a theoria do progresso moral, é, já não digo, levantarmo-nos contra nossa propria existencia n'este lado do Atlantico, mas, sermos os poetas de uma raça que não é a nossa. Póde isentar-se o poeta de qualquer servidão de sentimento, mesmo da do patriotismo, mas não póde querer ser o poeta natural de uma sociedade, que elle nega radicalmente. A vida do Brazil começou em 1500; antes existia o seu solo, mas com outro nome e povoado por outra raça. O dominio d'essa desappareceu, barbaramente perseguido, é certo, e refugiou-se no interior ainda virgem do paiz. Nada ficou sobre o sólo attestando a antiga existencia das tribus primitivas; nenhuma forma de sociedade estavel havia entre ellas, emquanto no Perú os Incas tinham o seu throno firmado no coração de uma raça, cujos monumentos e construc. ções maravilharam os conquistadores. Aquelle que contasse da vida errante, que po voasse o deserto de illusões, que puzesse no coração de nosso indio os sentimentos mais ternos do seu, que fizesse-o muitas vezes echo de suas proprias dores, que lhe désse a eloquencia de um tribuno e a imaginação de um poeta, esse poderia fazer uma obra admiravel phantasia; faria mesmo uma obaa da mais verdadeira e ideal poesia, O Uruguay dá nos testemunho d'isso; mas o poeta, por maior que fosse o seu denio não faria um poema nacional. A litterratura, phrase de um dos mais profundos espiritos da Restauração, de Royer-Collard, é a expressão accidental da sociedade" e o que tem a sociedade brazileira com as tribus indigenas? Gonçalves Dias, por exemplo, nos seus Cantos comprehendeu bem isso; eis porque parece-nos ter tão pouca razão o Sr. Alexandre Herculano em chamar ás Poesias Americanas a verdadeira poesia nacional do Brazil, quanta teve elle em lamentar que ellas não occupassem maior espaço no volume (1). Gonçalves Dias é um dos poetas que mais tiveram o sentimento americano; mas suas poesias indigenas seriam menos facilmente da poesia tupy do que seriam do cancioneiro hespanhol suas sextilhas de Fr. Antão. A côr local não constitue a originalidade de uma litteratura. Se a côr local bastasse para isso, Gonçalves Dias seria andaluz do tempo dos sarracenos, Byron seria veneziano ou grego e Shakspeare seria ao mesmo tempo bretão, romano e moiro. (1) Esses mesmos pensamentos aqui mais desenvolvidos encontram-se em um artigo meu-a Poesia no Pacifico-impresso na Reforma. Ha alguma cousa mais que realisar para uma litteratura ser nacional, é expressar o estado da sociedade, que n'ella se reflecte. Comprehenderam isso homens de talento como os que haviam tentado nacionalisar no Brazil a poesia guarany, ou para melhor dizer, a poesia que intenta ser guarany, porque os poetas, que pintam-nos esses povos, dão-lhes sentimentos que elles não reconheceriam, e ideias de uma civilisação á que nunca chegaram. Mas os pintores de nossa sociedade foram tão infelizes como os da vida selvagem. No Brazil não ha por ora originalidade alguma, nem de artes, nem de construcção, nem de costumes, nem de vida. Ha duas coisas, porém, que fazem parecer tudo isso novo e original: a primeira, digamol-o em nossa honra, é a natureza; a segunda, digamol-o para nossa vergonha, é a escravidão. Ora acontece que ha sempre nas obras dos escriptores, que querem ser nacionaes, traços, reflexos, signaes d'essa deploravel instituição. O que constitue nos seus livros a particularidade de nossas scenas familiares, de nossa vida campestre, são os quadros do captiveiro humano. Assim a nossa vida é a mesma dos outros paizes, com a differença que entre nós ha a escravidão de mais. E' isso que forma a originalidade brazileira. E' certo que alguns de nossos escriptores pintaram a escravidão de modo á fazel-a odiar; ao lado d'esses, porém, cujas obras pertencem mais á polemica do que ao romance ou á poesia, ha muitos, quasi todos, que confundem insensivelmente os dois estados, e que, quando querem dar a côr local do paiz á suas obras, trazem uma lembrança do captiveiro, sem indagarem se |