raldo atirou-a sobre a rocha, em que se levantava a atalaia; o soldado dormia dentro, com um golpe decepou-lhe elle a cabeça. Tomada a torre, Evora foi sorprehendida, e mais uma estrella brilhou na corôa de Affonso Henriques. Essa historia tão triste pela morte da moça arabe que dormia á janella, talvez com sonhos de amor e de vida, o poeta transmittio-a á posteridade em uma bella estancia. Nuno Alvares, o Scipião portuguez, e o infante D. Henrique são os mais notaveis d'entre os outros heróes do Portugal antigo. Chegado ao fim da narração, o poeta não pôde conter sua magoa ao ver os herdeiros d'esses grandes nomes. Talvez sem querer puzesse elle na bocca do Gama os sentimentos que tinha na alma; a geração de 1498 fôra ardente e conhecera ainda o valor das tradições do passado. Era de seu tempo que o poeta queria fallar. Victima dos preconceitos da nobreza, Camões tinha soffrido a cruel separação da mulher que amava, o exilio, e quantas dôres o amor condemnado á uma eterna viuvez alimenta no coração. Quem eram, porém, esses que assim degradavam o genio abaixo de alguns pergaminhos e honravam-se unicamente do acaso do nascimento? Eram homens que não zelavam a herança de seus maiores e que seriam incapazes de sopezarlhes as lanças e de revestir suas armaduras, guardadas pomposamente nos velhos solares. Como lamenta o poeta o trabalho dos antigos heróes para deixarem uma casa, em que o valor se transmittisse com o sangue! A opulencia traria a ociosidade, e esta enervaria o coração: « Cegos! que dos trabalhos, que tiveram Com lhes deixar descansos corruptores! >> No meiado do seculo XVI havia em Portugal um poeta de genio que ousava dizer á nobreza verdades crueis; era o amor que lhe inspirava essa apostrophe. Seculos depois o amor inspirará outra ainda mais eloquente á Mirabeau! A humanidade precisava de muito tempo para sacudir a mortalha da idade média, e para reconhecer todo o fundo de verdade e de observação, que havia nas estancias do poeta. A nobreza, como casta, foi uma creação de feudalismo na Europa. Vasco da Gama ia encontrar no Oriente a mesma distincção entre os homens. Era pois uma instituição do passado, uma mumia arrancada ao tumulo do velho Egypto. Camões, com o coração ferido e com a intuição do genio, reconheceu logo que esse corpo era um cadaver, e disse-lh'o. Essas estancias admiraveis de bom senso e patriotismo provam da parte do poeta a mais completa isenção de espirito. Corneille, Racine, Bossuet não ousariam fallar assim; mas Camões acima de tudo punha a patria. Uma nobreza forte podia ser a espada de seu paiz, uma nobreza fraca faria d'elle um serralho. Isso vio o poeta e, com uma inteira abnegação, disse-o em seu poema. Quantos annos, porém, foram precisos para que o privilegio cessasse e a casta se dissolvesse no seio do povo? E' por isso que dizemos que os poetas são precursores, e que no genio ha uma intuição que descobre o futuro! : VII Chegamos percorrendo o poema, d'esta vez com a idéa de patria, ao ultimo canto. E' nelle que vemos as estatuas dos heróes da India. Estão os portuguezes na Ilha dos amores, e a deusa, amante do Gama, começa a desvendar-lhe os destinos de sua patria. Antes de referir as prophecias da linda Tethys, o poeta parece desanimar. Depois de muitos e inauditos soffrimentos, vencel-o-hia a fadiga, e o poema ficaria sem o seu magnifico complemento? Não; era uma divida sagrada que elle tinha de pagar. E' certo que os desgostos pezavam-lhe na alma, que a vida era para elle um supplicio, que sempre tinha colhido ingratidão onde semeára amor, que estava velho e as recordações eram-lhe tão amargas como a realidade. N'essa noite, porém, de desanimo e descrença, que o envolvia, entravam, filtravam ás vezes raios de fé e consolação; lembrava-se de Catharina, lembrava-se da patria, de Deus, e sentia que no mundo o maior prazer é o do homem que pode dizer com Ovidio: «Jamque opus exegi, quod nec Jovis ira, nec ignes, Nec poterit ferrum, nec edax abolere vetustas. » Emfim acabei uma obra que nem a ira de Jupiter, nem o ferro, nem o incendio, nem os seculos poderão destruir!" Pedia elle então á sua musa que o ajudasse completar esse poema da gloria nacional, e, rejuvenescendo, o seu estro tinha toda a abundancia, toda a frescura de seus melhores dias. Eis a estancia: «Vão os annos descendo, e já do estio O primeiro de todos os heróes da India é Pacheco, o Achilles Lusitano. O poeta pinta as suas façanhas em numerosos versos e torna suas batalhas lendarias; mas, lembrando-se de seu triste fado, faz a deusa dirigir uma apostrophe á Belisario, em que mostra a triste sorte do governador da India, condemnado á morrer indigente, depois de ter soffrido as maiores humilhações. Esses ver-. sos o poeta escreveu-os com sentimento. Seu destino parecia-lhe dever ser o mesmo do heróe portuguez, e, com a altivez do genio, não acreditava ter feito menos do que elle pela patria. A perspectiva, no fim de uma vida inteira de sacrificios, de morrer em um leito de hospital dictou á Camões essas oitavas de uma tão grande energia. E' uma accusação feita á D. Manoel, no reinado de seu neto, e feita com vigor; ainda que o poeta quizesse temperal-a com uma phrase que é uma inverdade historica ó rei só n'isto iniquo, a ingratidão do rei é patente e a censura é acre. Dizendo á Belisario, cujos infortunios foram talvez exagerados pela piedade popular, que elle teria em Pacheco um companheiro, assim nos feitos, << Como no galardão injusto e vario, » a deusa continúa : << Em ti, e n'elle veremos altos peitos, Manda mais que a justiça, e que a verdade, << Isto fazem os reis, quando embebidos A' lingua vă de Ulysses fraudulenta. >> Quem póde ler esses versos sem reconhecer a boa tempera da alma de Camões? Quem póde negar-lhe coragem quando elle assim ataca o throno, os cortezãos o os validos, e quando em cada verso d'esses os contemporaneos veriam a satyra de seu tempo? Como, porém, se isso não bastasse, o poeta interpella o proprio D. Manoel. Que fina ironia a d'estes dois versos: «Se não és pera dar-lhe honroso estado dirigida aos reis que não sabiam recompensar os que lhes davam novos reinos, como Pacheco e Cortez, nem os que lhes descobriam novos mundos, como o Gama e Colombo! Vemos depois D. Francisco de Almeida e seu filho Lourenço de Almeida. A morte deste é pintada em um quadro de uma grande verdade; a poesia pouco tinha que accrescentar á historia. |