<< Com toda uma coxa fóra, que em pedaços, Lhe leva um cego tiro, que passára, Esse heróe que se serve do coração que lhe ficou, é uma das mais bellas pinturas do valor que sobrevive ao soffrimento e que é sempre o mesmo em quanto ha no corpo um resto de vida. D'este podia elle dizer promettendo a eternidade á sua memoria : « Vai-te, alma, em paz da guerra turbulenta. A dôr e a ira do vice-rei pela morte de seu filho é descripta em uma oitava, que respira colera e que em se advinha o exterminio do inimigo; é um pai que arde em desejos de vingança, e que diante dos olhos só tem o quadro da morte heroiça do filho : << Eis vem o pai, com animo estupendo, pensa elle então em destruir o poder contrario, afogal-o em seu sangue, sepultal-o com suas náos no fundo do mar; antes, porém, de encontrar MirHocem, afia elle a espada na cidade de Dabul, « Qual o touro cioso, que se ensaia, Pera a crua peleja, os cornos tenta No tronco de um carvalho, ou alta faia, D. Francisca de Almeida é dos mais notaveis nomes feitos pelas armas na conquista da India ; 1 a morte mesmo accrescenta-lhe novo prestigio ; já Adamastor havia rendido homenagem á seu tumulo. Vem depois o grande Albuquerque, cuja apparição é representada por um clarão, que deslumbra a deusa: << Mas oh, que luz tamanha, que abrir sinto, Lá no mar de Melinde em sangue tinto ! O poeta, porém, fal-a interromper os louvores, por lembrar-se de um acto de rigor praticado por ordem de Albuquerque. Sabendo que um de sua armada tinha relações com uma escrava moura, destinada á rainha, mandou-o enforcar em uma das náos. Camões sentio no coração ao reler as chronicas uma oppressão de dôr; o cadaver d'esse soldado pendurado nas vergas da náo, pelas sombras da noite, desenhou-se á seus olhos e elle perguntou qual o crime do executado. Era um desvio do amor, e o poeta tinha sempre o mesmo perdão para elles. A deusa relata desde então a conquista da India; Soares, Menezes, Siqueira, o forte Mascarenhas, Sampaio feroz, Noronha, Castro libertador, apparecem entre tantos outros na galeria dos heroes do Oriente. Assim desde o titulo do poema até o seu epilogo o poeta mostra que só quiz cantar a patria. Esse livro que elle escreveu com tanto amor era uma offerta do coração. Nunca um poeta teve um mais difficil assumpto para escrever uma epopéa. Quem ler o roteiro de Vasco da Gama perguntará admirado como poderia aquillo ser o argumento de um poema. E' certo que a navegação foi altamente heroica. No tempo dos argonautas o valor estava em confiar-se ao mar; no tempo do Gama as viagens não offereciam senão perigos excepcionaes, e hoje com o vapor é quasi mathematico o periodo e o resultado d'ellas. Mas o descobrimento de um mundo é um feito epico e legendario. Os perigos atravessados, os obstaculos vencidos, a luta quotidiana dos chefes que confiam e da tripulação que duvida, os novos horisontes, os novos astros e até os novos phenomenos maritimos; a anciedade de cada manhã, em que se quer descobrir uma terra, que não surge mais; a gloria de sulcar mares virgens, o prestigio do desconhecido, tudo faz da travessia de um Gama ou de um Colombo um periodo realmente epico. A terra, depois, que se mostra, a alegria de todos, a natureza virgem, uma vegetação desconhecida, outras raças de homens, um mundo novo emfim! eis uma verdadeira epopéa. Fazer, porém, com esses elementos um poema, que não seja a copia da natureza morta, que não seja a repetição do diario de bordo, que no mais alto gráo prenda o interesse, dramatico, cheio de vida, de movimento e de paixão, eis o que nenhum poeta pôde fazer antes de Camões, nem ousou fazer depois. Para alcançar tudo o que obteve, o poeta tomou a historia da patria, e fez d'essa expedição que descobriu a India um momento da vida nacional. O heróe ficou sendo o paiz e o poema pôde com verdade ser chamado os Lusiadas. Ao lado, pois, da acção epica que se desenvolve em todo o poema, porque vemos as náos sahirem de Belem, atravessar os mares da Africa, dobrar o cabo Tormentorio, chegar á Mombaça e Melinde, vencer uma tempestade e descobrir a India pela claridade da manhã-ha outra acção: é a historia do paiz. Essa começa na legenda, e desenvolve-se até quasi Alcacer. Ao lado do Gama ha Affonso Henriques, que venceu os mouros, D. João I, que venceu a Hespanha; é o poema da nação! Esse foi o seu espirito, esse foi o pensamento do poeta! Camões amava Portugal como um filho e como um amante. Seu livro é a expressão desse amor, que se pode chamar no mais puro sentido da palavra-uma paixão. Era um penhor de vida, que elle queria dar a seu paiz; uma revelação celeste lhe dizia que o seu poema seria talvez um dia o maior titulo da gloria portugueza, que esse livro seria uma bandeira. Portugal era pequeno pelo territorio, quiz elle fazel-o grande pelo espirito, e para isso determinou-se a crear a legenda de sua patria; coloriu todos os feitos heroicos, com a luz do mytho, e assim elevou o seu paiz acima dos outros. Dos povos modernos da Europa, Portugal é o unico que tem um poema nacional: sua historia é uma longa epopea! 1 As mais bellas pinturas dos Lusiadas são desenhadas com as côres de Homero, com um raio do Olympo. Mas, se a mythologia inspirou ao poeta quadros immortaes, como a apparição de Adamastor, as nymphas cercando a frota do Gama, a ilha dos Amores, prendeu por outro lado seu genio, não o deixando desenvolver-se em toda a sua originalidade. Se á maneira do poeta grego, seu mes tre, houvesse elle creado uma theogonia, se houvesse povoado com creações suas o mundo dos espiritos, anjos ou demonios, se houvesse sido sempre o poeta de sua fé, e tido a coragem de Dante ou a sobriedade de Tasso, os Lusiadas não teriam certas bellezas convencionaes, neni pareceriam ás vezes obra de outro seculo e de outro mundo que aquelles em que viram a luz. Antes de julgarmos em geral o valor do maravilhoso pagão, vamos mos |