trar os defeitos e as bellezas, que o emprego dos meios poeticos de Virgilio deixou no poema portuguez. Venus é a protectora da frota lusitana; apparece ella sob todos os nomes nos Lusiadas, e se este fosse um poema religioso seria o poema de Venus. Baccho é desde o primeiro canto o inimigo dos portuguezes. Algum critico inclinado á ligar tudo em um systema poderia pensar que Camões queria destruir a impressão do poema de Nonnus, e que esse Baccho não era senão o sol cioso dos portuguezes que queriam desvendar o segredo de seus dominios e de seu berço. Porque Venus é assim a protectora da raça lusitana? A adoração de Camões por Virgilio explica o ter elle procurado para seu paiz a divina guarda da mãi de Enéas. << Dou-vos tambem aquelle illustre Gama e quem compara os Lusiadas á Eneida vê que o destino do filho de Anchises, a gloria de sua odysséa, e a de ter fundado um novo reino longe da patria, foi o destino que Camões buscou para a descobridor da India. De modo nenhum queremos dizer que os dois poemas tenham uma só inspiração; a obra do poeta portuguez é perfeitamente nova na execução, e ainda que elle traçasse á seu genio uma barreira, que era a arte de Aristoteles e o plano dos velhos poemas, o d'elle só tem de parecido com seus antecessores os limites que deu á sua obra; dentro, porém, dessas regras da poetica de Virgilio, moveu-se elle sempre com a espontaneidade de seu prodigioso engenho. Dando ao Gama, ou querendo dar ao Gama, o prestigio historico de Enéas, o poeta collocou a familia lusitana, como o outro collocára, depois de Homero, a familia troiana,sob a protecção da deusa do amor. Se illudidos e atraiçoados vão os portuguezes em Mombaça ancorar em um ponto onde a abordagem é facil e a victoria segura para os mouros, é a linda Erycina quem os salva collocando-se com as Nereidas em frente á frota lusitana e pondo « ..... no madeiro duro o brando peito >> de modo a forçar para traz a náo do almirante, desviando-a da barra inimiga. Se, escapando ás ciladas do rei de Mombaça, Vasco da Gama implora a misericordia celeste, e invoca a guarda divina para que lhe mostre a terra que andam buscando, dizendo-lhe: «Pois só por teu serviço navegamos, >> quem lhe ouve essa supplica é a formosa Dione. Não parece que é no interesse desse paganismo já sepultado sob as ruinas de dez seculos e de um mundo todo que andam os portuguezes navegando? Se no meio da grande tempestade armada por Baccho, estando as náos já prestes a desapparecer no oceano, Vasco da Gama eleva á Deus uma oração magnifica, em que não lamenta a morte, mas o não ter morrido combatendo pela patria, o céo não se commove, e é só Venus que ao luzir pela madrugada no firmamento e ao visitar « A terra, e o largo mar, com leda frente, >> sente-se tocada de medo e de ira ao ver a sua cara armada. Não é á um gesto divino, como esse biblico ao qual foi feita a luz, que se desfaz a tempestade; a metereologia christã não tinha ainda as honras da poesia, as forças da natureza eram as divindades que povoavam o invisivel. Desfaz-se a tempestade porque Venus manda as nymphas coroarem-se de grinaldas de rosas e os ventos namorados não podem mais soprar; Orithia prende Boreas, Noto abranda-se á um sorriso de Galatéa, e somente pelo poder do amor a tempestade que tinha quasi devorado a frota lusitana, e com ella o dominio portuguez nas Indias e a memoria dessa expedição immortal, foi vencida em alguns momentos. Quando a manhã lançou seus primeiros raios nos outeiros, que atravessa o Ganges, os marinheiros poderam saudar a terra da verdadeira India. Emfim, se depois d'essa longa peregrinação pelos mares do Oriente, vão os portuguezes voltar cansados de tantas fadigas á terra natal, temendo não ter outra recompensa mais que a da historia, e essa para os chefes, é Venus quem faz surgir para elles a ilha dos Amores.... especie de paraizo musulmano onde as nymphas, mais bellas que as houris do propheta, recebem os ousados navegantes da India. Seja essa ilha a allegoria da immortalidade e da gloria, seja mesmo o puro reinado da Venus celeste, a verdade é que foi Venus quem sustentou, quem conduzio,e quem recompensou os exploradores do Oriente. Esquecendo por agora o valor litterario de cada um d'esses sublimes quadros, vejamos que effeito produz essa mythologia ainda espalhada por todo o poema. Camões pertenceu á religião catholica; ainda que por vezes o fanatismo e o clero merecessem sua censura, não se póde dizer que confundisse elle a doutrina com a superstição, o sacerdocio com os ministros; Camões foi, pois, e viveu sempre catholico, e por isso, ainda que sua imaginação ás vezes acompanhasse as deliciosas ficções do paganismo hellenico, não se póde crer que sua fé vacillasse. Não; era elle um fervente sectario que julgava prestar um serviço á fé e á patria escrevendo seu poema. Quiz elle cantar à gloria dos reis, Havia n'elle tambem um germen de fanatismo arabe, porque queria eternisar as devastações feitas nos paizes gentios, esquecendo que ao mesmo tempo absolvia para sempre os Gengis-Khans e os Atilas... e as terras viciosas De Africa, e de Asia, andáram devastando. Cantava assim Camões a gloria dos que iam navegando para estender a lei de Christo. Vasco da Gama parece-nos, em um de seus versos, um missionario como S. Francisco Xavier. Se, pois, o poema de Camões era no seu entender um poema christão, como depois deviam ser com alguma phantasia a Jerusalém libertada e com todo o puritanismo inglez o Paraiso perdido, essa mythologia é contradictoria com ó seu pensamento cardeal. Como ao Gama que invoca o Deus do seculo XV só responde Venus? como só ella protege e salva essa frota que vai estender a fé christa? como depois que a conduz á seu destino e fal-a produzir todos os fructos, ou pelo menos espalhar todas as sementes, que tinha por missão deixar em terras da India, é ainda a mesma Venus quem recompensa os portuguezes? Que ha de commum entre a religião de Christo e o culto de Venus? Que obra foi essa de propaganda christã que só recebeo recompensa da divindade menos popular da idade média e de seu ascetismo? Parece antes á todos os que lêem os Lusiadas que o christianismo e o brahmanismo não eram os rivaes; toda a contenda é entre Venus e Baccho. Se Venus triumpha, o Oriente está descoberto; se Baccho triumpha, o cabo Tormentorio terá sido chamado por D. João II cabo da Boa Esperança por uma infeliz illusão, que devorará todas as armadas lusitanas. Rasgai o livro dos commentadores, esquecei a historia tão popular do poeta, os Lusiadas vos parecerão escriptos por um grande genio que pertencesse á religião de Virgilio! Não foi, porém, arbitrariamente que o epico portuguez figurou essa lucta entre duas divindades do antigo Olympo, Venus e Baccho, lucta que se desenvolve através de todo o poema. Na Iliada os deuses levam tão longe seu amor que tomam parte por aquelles que protegem nos combates dos gregos e dos troianos; na Eneida o amor de Venus continúa por seu filho, que o braço de Neptuno havia arrebatado aos dardos do divino Achilles ; seria, porém, nos Lusiadas a protecção de Venus e o odio de Baccho reflexo dos dois outros poemas, ou teria Camões um pensamento mais profundo que occultar sob esse symbolismo? |