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CAPITULO II

ADAMASTOR

As náos portuguezas, depois de uma já tão longa viagem, iam approximando-se da extremidade sul da Africa, do cabo das Tormentas. Era a fronteira do mar das Indias, a porta do Oriente, que ellas iam atravessar com as velas desfraldadas, pela esteira de Bartholomeu Dias.

Todos os que lemos os Lusiadas seguimos sempre com os olhos essas caravélas, prolongamento fluctuante da grande nação.

Camões é verdadeiramente o poeta da navegação. Suas descripções maritimas são inimitaveis. Homem do mar e poeta, devia elle ser o primeiro pintor das grandes scenas do oceano, e na verdade nenhum pincel reproduz a magestade de seus quadros.

Não pintou elle sómente a natureza, descreveu as impressões da alma diante d'ella; os sentimentos do navegante ficaram-nos todos em versos eternos. Não nos contou elle em uma de suas estancias o que se passa com aquelle que deixa a patria, que sente afastar-se do Tejo e que, quando a ultima penumbra da costa desapparece na raia do horisonte, acha-se entre o céo e o mar, murmurando já com lagrimas as palavras do poeta:

« Fortunati quorum jam mænia surgunt? »

<< Felizes os que veem despontar os muros de sua cidade! »

<< Já a vista pouco e pouco se desterra
D'aquelles patrios montes, que ficavam :
Ficava o caro Tejo, e a fresca serra

De Cintra ; e n'ella os olhos se alongavam.
Ficava-nos tambem na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam ;
E já despois que toda se escondeo,

Não vimos mais emfim, que mar e céo. »

Como nos descreve elle no canto VI uma tempestade no mar das Indias e a calma que lhe succede! Não nos parece ver em todo o seu horror esse terrivel quadro maritimo: as náos alagadas, com os mastros partidos, os raios allumiando a noite negra e feia, os montes derribados pelas ondas, as raizes das arvores viradas para o céo, as velas rasgadas pela força dos ventos, e o canto triste das alcyones, cujo destino é cantar durante a tormenta as miserias do naufragio? E depois que vemos toda essa tempestade desfazer-se por força do amor, não dir-se-hia que sentimos o doce reflexo da luz matutina sobre o mar, fatigado de tanta colera e coberto ainda de suas espumas ?

Nenhum poeta descreveu tão bem os grandes espectaculos do oceano, nenhum tambem foi tão homem do mar, como Camões; elle sentiu a impressão dessas scenas, atravessou os perigos da tormenta, salvou-se de um naufragio, viveu, por assim dizermos, com os olhos fitos no mar caminho da patria distante.

Como pinta elle uma vigia á bordo! a náo isolada no meio do oceano e a vigia velando à noite; é uma noite de luar, uma noite serena, em que apenas a brisa corre pelas ondas sem despertal-as e os marinheiros dormem ao relento do céo tropical:

«Da lua os claros raios rutilavam
Pelas argenteas ondas neptuninas;
As estrellas os céos acompanhavam,
Qual campo revestido de boninas :
Os furiosos ventos repousavam
Pelas covas escuras peregrinas;
Porém da armada a gente vigiava,

Como, per longo tempo, costumava. »

A' vida do mar, do desterro, das armas deveu elle sem duvida parte de sua individualidade moral e poetica; sobretudo a longa contemplação do horisonte, do firmamento, do infinito, porque em uma navegação de muitos mezes o pensamento não tem senão esses sublimes objectos em que fixar-se, devia ter dado á sua obra essa unidade, essa harmonia, esse perfume todo intrinseco de religião, de patriotismo, de justiça e de amor, que nenhuma litteratura sentio exhalar-se de uma unica de suas obras primas! tanto é verdade que o infinito é a patria de tudo que é realmente grande, e que o genio fecundado pelo ideal póde ser chamado divino! "

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A mais soberba, porém, de quantas creações o o mar inspirou á Camões é o Adamastor. Dizemos o mar, porque foi talvez ao dobrar pela primeira vez o cabo das Tormentas que elle teve essa concepção. Comprehende-se que por uma noite sombria a costa africana tomasse as proporções de um phantasma, e que ao atravessar esse cabo de tão máo agoiro o poeta meditasse sobre o dominio do Oriente, que elle tinha depois franqueado á sua patria, e visse nisso uma grande fatalidade vencida pelo genio de seu paiz á custa de innumeros sacrificios. N'esse momento, as catastrophes de que elle fez propheta Adamastor, vir-lhe-iam á memoria, e sua imaginação provocada naturalmente pelo

lugar, pela historia, e por sua propria viagem no rumo do Gama, teria concebido essa inimitavel creação.

Vão as náos lusitanas penetrar nos mares do Oriente quando por uma noite de uma treva transparente desenvolve-se ao longe uma nuvem espessa e de seu seio começa a desprender-se a fórma de um novo colosso de Rhodes. Seu rosto é carregado como uma costa arida e queimada pelo sol, sua barba esqualida como a vegetação dos pantanos africanos, os olhos são encovados, a postura é medonha como a dos penedos que surgem á prôa do navio, a côr é terrena, a bocca negra como a dos precipicios e das cavernas, os dentes amarellos como a espuma phosphorescente em noite de tormenta. Não é esse colosso, assim desenhado nos versos do poeta:

<< Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandissima estatura,
O rosto carregado, a barba esqualida :
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a côr terrena e pallida,
Cheios de terra, e crespos os cabellos,
A bocca negra, os dentes amarellos. >>

a propria sombra de uma costa distante? Não parece a representação animada do promontorio, tão real que o espirito depois segue a metamorphose do gigante no cabo, como se aquelle não fosse senão a perspectiva longinqua deste? E' o cabo das Tormentas quem assim detem as náos portuguezas e faz parar o Gama. Deitado na extremidade sul da Africa, era elle o eunucho que guardava a virgindade dos mares do Oriente e os thalamos do sol.

Já Bartholomeu Dias o havia descoberto, sem ter podido desvendar os seus segredos; a frota lusitana, porém, d'esta vez tinha por si o destino, trazia o rumo verdadeiro dos berços do dia, e ia na direcção das Indias. Para desviar os portuguezes d'esse caminho, para impedir que as suas náos rasgassem o seio virgem das ondas do Indostão e da Arabia, o gigante toma emprestada a voz do oceano e começa a desvendar-lhes os casos. futuros. Como exprobra elle aos Lusos a ousadia de navegarem esses mares, por tantos seculos virgens do roçar de qualquer lenho! como lhes annuncia a completa destruição da primeira armada que os seguisse n'essa passagem, a infeliz armada de Pedro Alvares Cabral! como os previne da morte de Bartholomeu Dias, seu descobridor, com uma ira tão concentrada que faz crer no poder de sua vingança! que linda homenagem a D. Francisco d'Almeida não é essa tambem cruel prophecia, em que se mede o valor do homem pela ira de Adamastor e pelo involuntario tributo que elle lhe paga:

«E do primeiro illustre, que a ventura
Com fama alta fizer tocar os céos,
Serei eterna e nova sepultura

Per juizos incognitos de Deus. »

Não fallou, porém, nunca o poeta a um só sentimento; uma das provas de seu genio é que sempre os moveu todos. Assim Adamastor não podia só querer amedrontar esses novos argonautas, devia tambem tocar-lhes o coração. O medo não era conhecido por esses navegantes, cujo chefe, outro Jason, podia perguntar ao colosso:

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