os penedos da costa. De repente em nossa imaginação d'esse ente, animado outr'ora de uma força tão grande, não resta senão o espirito, atado á um promontorio extenso, e soffrendo cada vez mais viva a dôr de um amor impossivel... « .... e por mais dobradas magoas Me anda Thetys cercando d'estas agoas. >> Tal é a evocação que surge no mar das Indias diante dos navegantes portuguezes. N'essas oitavas reunio Camões todos os thesouros de seu genio. E' elle ao mesmo tempo legendario, heroico, apaixonado, e portuguez: o amor tem no naufragio de Sepulveda gemidos e lagrimas, na lenda de Thetys graça, frescura e enlevo; o patriotismo expande-se n'essas prophecias da gloria lusitana; e o verso é ora terno, ora dramatico, ora tempestuoso, é a fórma sempre adequada do pensamento. Quando lemos pela primeira vez os Lusiadas, a phrase de Adamastor ao Gama: «Aqui espero tomar (se não me engano) parece-nos não dirigir-se tão sómente á Bartholomeu Dias, mas á nação portugueza, e, se não conhecessemos a historia, aquelle promontorio deixado atraz, aquellas predicções de um remoto futuro, gelar-nos-iam de susto ao pensarmos na frota lusitana. O que, porém, quiz o poeta com essa creação foi dar uma fórma, uma voz, ao passado vencido pelo genio portuguez; essas deploraveis catastrophes não são mais do que o preço fatal da verdadeira grandeza! Assim quando vemos singrarem as náos lusitanas, depois de dobrado o Cabo das Tormentas, seguimol-as com fé e segurança, porque n'esses lenhos fluctuantes vai um principio de civilisação que não morre, e o primeiro raio que bate-lhes nas velas, quando a sombra de Adamastor se desfaz, é o raio da gloria! CAPITULO III O POEMA DE VENUS O canto II dos Lusiadas resente-se da leitura da Eneida; o poeta ainda tinha diante de si, como modelo, o poema de Virgilio, precisava ainda de um guia, não tendo coragem para fazer acceitar as creações do seu genio. Seguindo, porém, o original latino, Camões mostrou sempre que imital-o era mais um constrangimento do que um auxilio para si. E' elle como um condor que, posto nos Alpes e desconfiando do poder de seu vôo, não deixasse a região das aguias. O genio, porém, tem uma individualidade, seu dever é crear; assim, mesmo nos lugares dos Lusiadas em que se vê o poeta com o livro de Virgilio aberto diante de si, reconhece-se que o que e e elle produz é distincto, original, novo, como uma creação. O canto II, aquelle em que Camões mais recordou-se de seu querido poeta, vai dar-nos a prova dessa originalidade, que transparece sob as fórmas convencionaes da poetica latina. I O primeiro quadro é original na idéa e na expressão. Os portuguezes atraiçoados em Mombaça por obras de Baccho iam levando suas náos para perto de terra, onde ellas seriam tomadas pelos naturaes, quando a linda Erycina deliberou e conseguio salval-as. Com essa ficção mostrou Camões que era um verdadeiro poeta epico. Não se póde dizer ao certo como procedeu Homero compondo a Iliada; não se sabe se ha em todas essas fabulas poeticas um fundo de verdade, e menos poder-se-hia reconstruir a historia dos tempos heroicos tomando, por conjectura a parte dos mythos que se julgasse verosimil; mas o que nos parece é que Homero divinisou heróes populares, e explicou de um modo maravilhoso acontecimentos historicos, que antes delle já a imaginação do povo havia tornado legendarios. Se assim foi, Camões procedeu do mesmo modo ao crear essa fresca e deliciosa ficção. A descripção do poeta é a do Roteiro, (1) mas emquanto n'este se attribue ao poder de Jesus a salvação das náos lusitanas, aquelle suppõe Erycina empenhada em estorvar (1) No Roteiro da viagem de Vasco da Gama lê-se o seguinte: «A' terça-feira, em alevantando as anquoras pera ir pera dentro, o navio do capitam moor nom quis virar, e hiia em quu «A' gente portugueza, o fim nefando, »> e essa concepção produz um bello quadro. E' o das nereidas que abrem as ondas com o peito; de todas essas alvas louras filhas do oceano, virgens como elle, voluveis como as ondas, ternas e peregrinas amigas dos ventos que as agitam e as serenam. No meio de todas, vem nos hombros de um tritão, Venus, a filha do mar, formada da espuma transparente e lucida. Ellas, espalhando-se pelas aguas, e fechando o caminho da barra, sustentam contra o seio o impulso das náos, levadas pela corrente e pelo vento, que incha as velas a rasgal-as. O poeta foi verdadeiramente creador aproveitando um episodio perdido no roteiro das viagens á India para dar-nos um quadro tão gracioso como este. Nenhum poeta antigo povoou tão bem como elle o oceano, nenhum deu tanta vida á esses mythos que a imaginação grega via scintillar nas que estava por popa. E emtam tornámos a lançar as anquoras: e em os navios estavam mouros comnosco, os quaees, depois que viram que nom hiamos, rrecolheram-se em huuma zavra, e hindo já por popa, os pilotos que vieram de Momcobiquy comnosco lançaram-se á augua, e os da zavra os tomaram. E como foy noute o capitam pingou (a) dous mouros dos que traziamos, que lhe disesem se tinham treiçam ordenada, os quaes diseram que como foramos dentro, que tinham ordenado de nos tomar e se vingarem do que fezeramos em Momcobiquy,...) E mais adeante: « Estas e muitas outras maldades ordena vam estes perros; mas Noso Senhor nom quis que se lhes desem a bem, porque nom criam nelle. » Roteiro, 2a edicção, pag. 39. (a) « Pingar: tormento que consistia em deitar pingos de oleo, cu resina a ferver, e até de metal derretido sobre a pelle de algum individuo para o constranger a confessar qualquer cousa. >> Idem, pag. 39. ondas; e teve elle razão, porque nós seguimos com mais confiança o rumo das náos pelo grande mar desconhecido, sabendo que nos rastos que ellas deixam após si ha divindades amigas e protectoras. Apenas viu Vasco da Gama o milagre, com que fôra favorecido, levanta um hymno á Deus e em uma prece roga-lhe que mostre-lhes a terra, que vão buscando. Quem ouve estas palavras é a formosa Dione, e mal as ouve dirige-se á Jupiter para pedir pela frota lusitana. A pintura de Venus mostra-nos que Camões não foi o creador da theogonia de que se serve; ainda que ella attinja um alto gráo de idealismo, esse céo em que está o seu Jupiter não é o céo do Zeus homerico, nem mesmo o de Virgilio. Ha nesse breve quadro do poeta muita coisa de humano, pouca de divino. No canto primeiro da Eneida, Venus comparece diante de Jupiter, quando este olhava para os desertos da Lybia; vem mais triste do que nunca e tem os olhos luminosos cheios de lagrimas, Tristior, et lacrimis oculos suffusa nitentes. Fallando á seu pai, seu discurso é grave e solemne; lembra-lhe a promessa feita de que os romanos, sangue renovado de Teucro, dominariam sobre o mar e sobre a terra; queixa-se de que Antenor tivesse já edificado a cidade de Padua e gozasse com os troianos fugitivos de repouso e de paz, em quanto ella, filha de Jupiter, e Enéas, seu filho, viam seus navios perdidos na tempestade e afastados das praias da Italia. E' esse, pergunta ella, o premio de nosso amor?" "" Hic pietatis honos? |