sua verdadeira Venus-tal qual elle a pintou ein um momento de inspiração, em que seu cinzel ̧tinha o colorido, o ardor, a claridade e a pureza de um raio de luz. A deusa, porém, devia ter sido pintada com outro typo; não fallamos da fórma, mas da alma. Ficou dito atraz que o poeta merece n'este ponto as censuras de Platão á Homero. Dirigindo-se á Jupiter parece ella menos uma divindade que pede justiça, como se nos mostra na Eneida do que uma << dama, que foi do incauto amante, Em brincos amorosos, maltratada. » Mas em favor do poeta deve-se dizer que elle não tinha por missão reconstruir o polytheismo, nem salvar a magestade dos antigos deuses; na Grecia antiga, onde a theogonia homerica era a religião do povo, devia um philosopho, como Platão, exigir que os deuses fossem os symbolos das mais altas virtudes. E' por isso que apenas dissemos, fallando de Camões, que a sua Venus mostra que elle não creou a theogonia de que se serve; não era deuses o que elle queria produzir, nem tinha elle o poder de divinisação que em certas épochas apparece no genio de um homem que dá ao povo uma lenda e uma religião (esse homem é ás vezes, para não dizermos quasi sempre, um poeta); o poder que elle tinha o de idealisar, de elevar as suas creações á uma região inviolavel, em que só podia alcançal-as e comprehendel-as a intelligencia pura. Animando Venus com a alma de uma mulher, que conhece o valor de cada sorriso, de cada palavra ou lagrima sua, o poeta, a nosso ver, não tentou o que podia: ser original seguindo Virgilio. E' uma questão de preferencia, e não duvidamos em sujeitar sempre qualquer de nossas opiniões á de um genio tão profundo e tão artista como foi Camões. Já que elle quiz dar á sua admiravel feitura um tal typo, e tornal-a tão humana, vejamos como realizou sua idéa. A pintura do rosto de Venus, ora triste, ora alegre, risonho entre lagrimas, é feita em uma estan- ' cia que é um modelo de observação fina, de graça natural e de harmonia poetica: « E mostrando no angelico semblante, Como dama, que foi do incauto amante, Que se aqueixa, e se ri n'um mesmo instante, A supplica de Venus é um mixto de resentimento sem colera, de ciumes fingidos, de lagrimas que riem, de apparente desespero, de confiança em seu valimento, de submissão que protesta ; é perfeitamente a linguagem da mulher, que ri, chora, desespera, irrita-se para logo humilhar-se, certa de que cada um desses meneios tem uma graça irresistivel. Uma tão verdadeira falla só podia acabar por um pranto, ultimo argumento do sexo.... mas, com que expressão entrecorta a deusa sua supplica! «E n'isto de mimosa O rosto banha em lagrimas ardentes, Deliciosa comparação que tem tanta fragrancia como a rosa de que falla o poeta, que adormeceu ainda em botão e que entreabre o seio ás,, lagrimas matutinas." (1) << Calada um pouco como se entre os dentes ia Venus recomeçar, quando Jupiter lhe atalha. A figura de Jupiter é descripta com uma phrase de Virgilio: « Co'o vulto alegre, qual do céo subido, Vultu quo cœlum tempestatesque serenat. Camões, á maneira de Petrarca, punha sempre a natureza em relação com o objecto amado, e acreditava na influencia de um olhar puro, sereno, luminoso, sobre o ar ambiente. Essa idéa, que se encontra muitas vezes em suas Rimas, é expressa em um dos mais bellos sonetos do poeta italiano por esta amenissima fórma: (1) E'l ciel di vaghe e lucide faville (2) Não admira pois que elle pintasse o seu Jupiter com os traços de Virgilio, se a sua Catharina assim tinha sido representada. O que admira é que um poeta tão idealista, como elle, nos descrevesse o A candida cecem das matutinas (2) Soneto CXL. Camões. beijo de Jupiter em Venus, do qual o poeta mantuana diz ligeiramente: « Oscula libavit nato, » da fórma seguinte': << As lagrymas lhe alimpa, e accendido Por mais que se queira interpretar favoravelmente o pensamento do poeta, dizendo que elle se referia a uma concepção unica, e que a formação de um mytho não tinha nada de material, a expressão se só se achára deixa-nos sempre em frente de um erro imperdoavel da parte do poeta. A resposta de Jupiter á Venus é a apothéose dos portuguezes. Esses elogios em uma bocca divina são a mais elevada fórma da gloria! Depois de ter lembrado os grandes feitos dos antigos heróes, e fallando de Antenor, como se respondesse ao que lhe dissera Venus na Eneida, Jupiter em uma palavra resume os fastos lusitanos: « Os vosses, mores cousas attentando, Lembrando-se de um facto, que narra Castanheda, de ter tremido o mar mui rijo e por bom espaço "o poeta arranca ao deus essa exclamação: "" «Oh gente forte e de altos pensamentos, Que tambem d'ella hão medo os elementos! >> Os cercos de Diu, a sujeição de Ormuz, a conquista de Gôa, Cananor e Calecut, tudo isso mostra Jupiter á filha já consolada e tambem a gente por tugueza dominando em todo o oceano, e entre tantos heróes o vulto de Duarte Pacheco : « E vereis em Cochim assinalar-se Tal é a soberba falla de Jupiter que nos lembra a da Eneida, e as promessas da gloria troyana. Essa intercessão de Venus pelos portuguezes, feita como se viu.com grande originalidade pelo nosso poeta, é uma das mais populares ficções dos Lusiadas. As prophecias de Jupiter, por assim dizermos no prologo do poema, dão-nos coragem, se nos esquecemos da historia, para seguirmos as náos portuguezas, e, quando ouvimos os duros casos de Adamastor, lembramo-nos d'ellas como de uma promessa divina que nos faz olhar os perigos como um sonho máo que deve desvanecer-se. Quanto á essa loura e alva figura, de uma pura e inalteravel belleza, symbolo do amor, ella será sempre para nós que lemos os Lusiadas a Venus de Camões. II No canto VI ainda Venus apparece salvando os portuguezes o canto VI é o mais igual, o mais dramatico, o mais opulento do poema. N'elle o poeta mostrou de que elevação e ao mesmo tempo de que extensão era o seu genio. |