Iam já os portuguezes tocando á terra da India e enxergando «Os thalamos do sol, que nasce ardente, >> quando Baccho tentou um ultimo esforço para afastal-os do futuro theatro de suas glorias. A sorte da raça lusitana mostrava-se clara á seus olhos invejosos e elle adevinhara que no céo só havia um pensamento: « De fazer de Lisboa nova Roma. » Estavam as náos portuguezas nos mares longiquos e desconhecidos do Oriente e n'ellas estava tudo que a civilisação occidental tinha podido mandar á busca de um novo mundo; uma vez perdidas, atiradas por uma tempestade sobre as costas, cu sumidas no fundo do oceano, o que restaria nas terras da India d'esse poder que as ia invadir e conquistar? Só destroços de um naufragio, e signáes da existencia de um povo que por muitos seculos não ousaria transpôr o cabo das Tormentas. Ao mar pois dirigiu-se Baccho, ao mar, á que o poeta grego tinha dado uma alma, que se chamava -Poseidon-ou Neptuno. O palacio desta divindade maritima é descripto com esmero pelo nosso poeta. São cidades phantasticas que acredita mos ver No mais interno fundo das profundas As aguas formam a transparente abobada d'esse mundo encantado; todos os edificios são feitos de uma massa chrystalina e diaphana: dir-se-hiam os castellos que as nuvens desenham no céo e que o sol penetra com as cores prismaticas. E' uma phantasia, que recorda as descripções que a sciencia faz do fundo do mar. Ha uma luz muito viva em toda essa marinha ideal, que o poeta não sabe se é formada de chrystal se de diamante-; esse palacio assim feito de uma substancia diaphana e luminosa, tendo por soalho as areias de prata fina, as portas de ouro marchetadas de rico aljofar e por zimborio o grande oceano, atravessado sempre pelos raios do sol, de que elle é o berço e o leito, lembra-nos o pincel e a imaginação de Ovidio. Não ha quem desconheça a pintura do palacio do sol; o poeta fel-a em alguns traços que são eternos. Esse edificio sem proporções terrestes, levantado sobre innumeras columnas, brilhando com a luz do ouro e das pedras, que lançam chammas, é para a imaginação de todos uma morada digna de Apollo; ao ler essa descripção, ninguem se recorda do templo de Cusco, onde os Incas tinham amontoado o ouro de muitos seculos: o que nos lembra logo é o sol, o sol de cuja luz o poeta parece fallar. Regia Solis erat sublimibus alta columnis, Clara micante auro, flammasque imitante pyropo. Que brilho é o d'essa atmosphera, que cerca Phebo, senão o do sol, que ninguem pode fixar, mesmo sendo dotado de uma natureza quasi divina, como Phaetonte ? 1 Com tanto mais razão citamos o poeta de Sulmona quanto é certo que Camões lembrou-se d'elle e quiz emular com elle n'essa descripção do palacio de Neptuno. Prova-nos isso a pintura dos quatro elementos feita pelo poeta á maneira dos antigos, que se deleitavam em descrever os lavrados da esculptura, como se pode ver em Homero, em Virgilio, em Ovidio e na bella descripção dos amores de Ariadne, em Catullo. O que havia esculpido nas portas de ouro e aljofar do palacio de Neptuno eram os quatro elementos; nas portas do palacio do sol havia outros quadros, mas a descripção do nosso poeta lembra-nos a cosmogonia de Ovidio e sua pintura do Cháos. Estes dois versos: Alli sublime o Fogo estava em cima não fazem pensar nos hexametros: Ignea convexi vis et sine pondere cœli Emicuit, summaque locum sibi legit in arce? "O fogo arde, e sem pezo occupa a mais elevada região.", Logo após elle leve se sublima O invisibil ar, que mais asinha é a traducção do verso latino : Proximus est aer illi levitate, locoque. Não citamos estes versos para denunciar um plagio, seria pueril; elle não existe. Queremos tão sómente mostrar que o poeta n'essa descripção emulou de industria com Ovidio. Se a crea ção d'este por uma luz tão viva que não se pode supportar nos lembra o sol, a d'aquelle por uma transparencia luminosa, por essas cavernas profundas, por uma areia mais alva que a prata, por uns toques insensiveis da luz que penetra o christal da agua, pelo aljofar, por umas refracções delicadas, nos lembra o mar. E' n'essas justas conveniencias da idéa com a forma que se avalia o verdadeiro genio: Phebo, o sol, não podia residir senão no palacio de Ovidio; Poseidon, o mar, não podia ter outra morada senão a que lhe deu Camões. Um poeta, porem, como elle, povôa seus mundos, e, ainda na harmonia dos seres com o meio em que vivem, reconhece-se que elle é um genio creador. Só quem pode crear concebe organismos tão perfeitos, sêres tão possíveis e tão reaes, um todo tão bem combinado e relaccionado com cada uma de suas partes, que vendo-se uma dessas creações diz-se logo: isto tem vida. O primeiro habitante mythico d'esse reino é Tritão, que «Era mancebo grande, ncgro e feio << Trombeta de seu pai e seu corrreio. >> Como o pinta Camões! ao ler essa descrição todos acreditam ver um filho das aguas, um habitante secular das caveruas do oceano, em cujas costas se haviam incrustado todos esses pequenos animaes que vivem na agua, e prendido os musgos das pedras: «Os cabellos da barba, e os que decem Da cabeça nos hombros, todos eram Uns limos prenhes d'agua; e bem parecem Nas pontas pendurados não fallecem Vê-se que o poeta quiz rir ao escrever essa estancia, mas o seu Tritão, que elle ainda nos pinta na seguinte oitava, coberto de << Ostras, e breguigões de musgo sujos é perfeitamente desenhado; o verso aspero, duro, cheio de saliencias, é o mas adequado para nos descrever as conchas d'esse monstro marinho. Se este tem essa forma irregular e feia, a pura Tethys caminha como uma outra Venus: « Grave e leda no gesto, e tam fermosa, A deusa do mar devia ter a transparencia das aguas, e o poeta sonha-a assim, quando falla de seu corpo crystallino. " A falla de Bacho aos deuses do mar é como todas as fallas do poema, composta com muita arte, e como todas tende a realçar a gloria portugueza.-Depois de ter-se dirigido aos deuses na ordem hierarchica do modo mais lisongeiro, depois de ter lembrado certas verdades, começa o filho de Semele á mostrar-lhes os perigos, que a expedição de Vasco da Gama faz correr Olympo. A oitava em que elle lembra aos deuses a primeira tentativa mythica do homem contra o céo, o crime de ter navegado os mares, e o progresso incessante que transformará o homem em deus, é de um maravilhoso effeito. A hyperbole final é |