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pelos ventos em furia, o poeta pinta-nos os delphins buscando nas cavernas do oceano refugio contra a tormenta; os raios vertiginosos só servem para tornar mais profunda a treva; e as aves marinhas, que denunciam a terra, soltam seu canto triste. Ao longe encoberta pela treva está a terra da India, a terra promettida aos portuguezes pela intuição do infante D. Henrique, de Bartholomeu Dias, de Vasco da Gama e á qual elles queriam chegar ainda como naufragos.

Os ventos, que levantam as ondas, devastam tambem a costa bravia, o mar atirado fóra de seu leito derriba as montanhas, as arvores seculares arrancadas pela força do temporal teem as raizes viradas para o céo. No oceano as areias são revolvidas até a superficie, e açoitam com furia as náos portuguezas! Eis a oitava em que todos esses effeitos da tempestade são pintados ao vivo, e como que renovados:

« Quantos montes então que derribaram
As ondas que batiam denodadas;
Quantas arvores velhas arrancaram
Do vento bravo as furias indignadas!
As forçosas raizes não cuidaram

Qne nunca pera o ceo fossem viradas;
Nem as fundas areias que podessem

Tanto os mares, que em cima as revolvessem. >>

Essa pintura, a mais bella de nossa lingua, como descripção da natureza, faz-nos pensar no naufragio da costa de Cambodge. Involuntariamente se nos representa ao espirito o poeta, no meio dessa tempestade, heróe d'essa lucta, e só pensando em aproveitar-lhe a magestade selvagem para reproduzil-a no poema, que salvava das ondas!

Vendo-se quasi perdido no meio da tormen

ta Vasco da Gama dirige-se á Deus. Sua oração é tibia, imitada do hebraico, é uma d'essas preces em que se lembram ao céo os beneficios feitos á outrem, esperando-se ter a mesma fortuna. E' erudita de mais, não sendo até natural que em tal transe lembrasse-se elle das syrtes, das aguas erythréas, dos Acroceraunios, de toda a bagagem classica. A sua lamentação, porém, é elevada e eloquente. Depois de ter implorado, a divina guarda solta elle este grito de dôr, em que se vê o mais puro amor da patria e da gloria:

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«Oh ditosos aquelles que puderam
Entre as agudas lanças africanas
Morrer, em quanto fortes sostiveram
A sancta fé nas terras mauritanas :
De quem feitos illustres se souberam,
De quem ficam memorias soberanas,
De quem se ganha a vida com perdella,
Doce fazendo a morte as honras d'ella. >>

Esta oitava pinta do modo o mais pathetico a dôr de morrer desconhecido, dôr tanto mais profunda quanto vinha na vespera da immortalidade, e quanto essas mesmas ondas, que teriam de saudar o descobridor, no dia seguinte atirariam ás praias, buscadas com tantos perigos, o cadaver do naufrago!

Continuava, porém, mais medonha a tempestade, e os ventos,

« Como touros indómitos bramando,
Mais e mais a tormenta accrescentavam
Pela miuda enxarcia assoviando, >>

quando a estrella d'alva surgio no horisonte com leda fronte e scintillou no mar escuro. Venus, que a governa, mediu com um olhar os perigos de sua gente e determinou salval-a da cilada de Baccho.

Para isso mandou ás nymphas pôr grinaldas de rosas e mostrar-se aos ventos com todas as seducções. Mal estes as viram, falleceram-lhes as forças, e exhaustos renderam-se aos pés das nymphas, como que presos em suas tranças. A queixa de Orithya á Boreas é de uma amante terna; devia Omphale fallar assim á Hercules..

<< Não creias fero Boreas, que te creio:
Que me tiveste nunca amor constante;
Que brandura é de amor mais certo arreio,
E não convem furor á firme amante :
Se já não pões á tanta insania freio,
Não esperes de mi d'aqui em diante,
Que possa mais amar-te, mas temerte.

Que amor comtigo em medo se converte. »

:

E' essa oitava a deliciosa expressão do amor que desarma a força é uma queixa suavissima como a que Dalila, murmurava aos ouvidos de Sansão quando elle volvia á sua tenda de juiz do povo, coberto do sangue da victoria!

Como Boreas, Noto, e todos os outros ventos aplacados não sopram mais, escravos das nymphas e assim desfaz-se a tempestade ao poder de Venus.

Genio admiravel o do poeta, que anima as cinzas do polytheismo, e tira d'ellas a mais bella allegoria do amor, que ha em lingua humana!

Sereno o mar, calmos os ventos, a claridade da manhã deixa avistar no fundo do horisonte a penumbra da terra. E' a terra de Calecut, a terra da India, de que já se sente a aragem nas velas das náos, e a cuja revelação ajoelha-se o Gama, como se ajoelhara Colombo diante de um novo mundo.

« Já a manhã clara dava nos outeiros,
Por onde o Ganges murmurando sôa,
Quando da celsa gavea os marinheiros
Enxergaram terra alta pela prôa.

E' assim Venus a protectora dos portuguezes. No concilio dos deuses, quando as náos ainda estão na costa occidental da Africa, é ella quem defende a causa lusitana; quem salva a frotajem Mombaça é ella, ella é quem obtem de Jupiter que a raça portugueza tenha seus gloriosos destinos, quem põe a frota do Gama no rumo das Indias, quem a salva da tempestade e mostra-lhe a terra promettida. Depois veremos que é ella quem recompensa todos os sacrificios d'essa expedição immortal, na Ilha dos Amores.

E' Venus, pois, a divindade tutelar dos portuguezes. N'essa viagem de 1497 á busca das Indias vão o christianismo, a sciencia, as artes e a civilisação protegidas pelo amor. E' o mytho de uma harmonia mysteriosa que prepara as forças physicas para a expansão das idéas eternas. O que vai n'essas náos, á tomar posse do Oriente, é um principio, que tinha tido os seus martyres, mas que havia chegado no fim do seculo XV á hora de triumphar.

As tempestades, as furias dos ventos e as correntes maritimas, tudo devia realçar com sua lucta a gloria do acontecimento, mas nunca impedil-o; os homens podiam duvidar, mas as náos, entregues ao oceano, seguiam o rumo de um novo mundo!

São essas as conjecturas que fazemos para dizer que, se os Lusiadas fossem uma obra religiosa, seriam o poema de Venus.

CAPITULO IV

A ILHA DOS AMORES

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Nas ondas de um mar irritado, aos incertos clarões da lua que lucta com a nevoa, sem uma estrella no céo, que possa indicar seu caminho ao piloto: ó deuses immortaes, dizem os marinheiros, repouso, repouso!" (1)

Mais do que repouso, pediam, porém, os intrepidos descobridores do Oriente. Tinham elles em alguns navios, perdidos na solidão de um mar desconhecido, dado um mundo á seu paiz, e voltando para o seio da patria, á reverem esses entes caros, cujas lagrimas o poeta recolheu para nos legar nas areias da praia de Belem, gozavam já de sua gloria, e com tanto prazer

« Que o coração pera elle é vaso estreito. >>

Sabia o poeta que a patria é as vezes esquecida, e que de ordinario a gratidão tem má memoria, e por isso quiz elle mesmo saldar a divida nacional.

Sabemos bem que os ousados navegantes que, chegando á Portugal, viram-se reduzidos á miseria e morreram em leitos do hospital, não tiveram

(1) Horacio.-Ode XVI, liv. 2o.

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