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dezes? A descripção é muito casta, muito idéal para um só momento admittir-se a possibilidade de semelhante conjectura.

A ilha de Venus é uma imagem do paraiso musulmano, ou dos Campos Elyseos.

O poeta não quiz conduzir os seus heróes ao inferno, como o havia feito Virgilio; mas como era preciso corôar o poema com as mais bellas perolas da gloria lusitana, e desfazer a impressão das tristes prophecias de Adamastor, achou elle meio para conseguil-o, dando ao mesmo tempo a immortalidade aos ousados navegantes. Esse recurso original foi a ilha dos amores, uma estação risonha da eternidade, em que elle figurou os descobridores da India já cercados de sua auréola.

Todas as religiões representaram sob uma fórma sensivel as delicias da segunda vida; todas crearam um paraiso, cheio de agua, perfumes, luz e harmonias em que se escoa a vida sem fim dos bemaventurados; poder-se-hia perguntar aos que nos fallam d'esse paraiso, como a alma pura póde gozar d'essas sensações, e como o espirito póde sentir o aroma dos olivedos eternos, o brilho ardente do sol, o doce ruido das aguas, a embriaguez do nectar e da ambrozia, a musica das citharas celestes. Essa primavera sem fim dos Campos Elyseos, como a intelligencia, na simples posse de sua idéa e de sua intuição, póde sentil-a sem vêl-a, sem ouvir os seus rumores, sem aspirar suas exhalações? Mas nós sabemos todos que essa é a allegoria da vida no absoluto; que esse paraiso, que uns queriam encontrar nas ilhas afortunadas, outros na ilha Leucé, é a patria da alma, o encantado momento em que ella torna ao seio do infinito.

Tambem o Tartaro, em torno do qual o Phlegtonte apertava seu cinto de chammas, é o exilio do homem máu, a pena eterna de sua separação do idéal.

O Eden, de que se procuram as ruinas na antiga Media, o que é senão a allegoria dos tempos primitivos, do tempo da expontaneidade, da virtude, em que o homem tomava pelo coração posse dos céos? e no entanto não se procura no mappa o lugar em que elle existiu e não se pensa que esses rios que o cortavam são os grandes rios da Asia menor, como se em um terreno todo moral, como o de uma antiga sociedade, fossem esses rios mais do que a imagem de quatro grandes sentimentos, que o fecundassem e depois desapparecessem na esterilidade do deserto?

Se por imagens tão sensiveis, representou-se a immortalidade da alma, porque não poderia o poeta representar a da gloria? Tanto mais direito tinha elle de fazel-o quanto a intervenção do maravilhoso dava á essa gloria o caracter de um dom superior e confundia a ingratidão de seu tempo e de seu paiz. A ilha dos amores apparece no fim dos Lusiadas como a apothéose antiga. E' ella no mar das Indias a imagem d'essa estrella em que Dante encontrou os homens sublimes que tinham buscado avidamente a gloria! (1)

Qualquer que seja a interpretação d'essa concepção unica em nossa litteratura, ella será sempre

(1) Paraiso.-Canto VI.

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uma das mais bellas concepções do espirito humano. E' um idylio, uma paisagem deliciosa; sente-se, atravéz dos versos do poeta, o perfume das moitas em flôr exhalando-se á noite nas praias arenosas; sente-se a suave temperatura da muita sombra, que havia no paiz; ouve-se o rumorejar da agua, o canto terno das aves, os saltos apressados da gazella. Talvez alguem que não possa recompôr com a imaginação o sitio que o poeta teve na sua, quando nos deixou essa pintura, supponha que queremos ser pittoresco; a ilha de Venus, porém, tem para nós, a vida, o movimento, a frescura de um d'esses sitios poeticos de que se guarda reminiscencia, e de que se acredita algumas vezes sentir o aroma longinquo trazido por uma brisa do mar. E' a illusão da saudade!

PARTE QUARTA

A LEGENDA HISTORICA

CAPITULO I

IGNEZ DE CASTRO

I

Ignez de Castro! tal é o nome por que se conhece um dos episodios do poema. Todos sabemos de cór essas eloquentes estancias, as mais tristes dos Lusiadas, e por ellas todos conhecemos a historia d'essa moça infeliz, dedicada amante e mãi, que o amor do rei D. Pedro devia fazer rainha annos depois da morte.

Nenhum facto é mais dramatico do que o acontecido em 7 de Janeiro de 1355 nos paços de Coimbra; nenhum tambem inspirou mais tragedias.

Mas como foi impossivel a Silvio Pellico attingir a creação ideal de Dante, chamada Francesca di Rimini, assim tem sido impossivel aos nossos autores tragicos igualar a narração de Camões. Era D. Ignez de Castro de uma nobre e real

familia. Tendo vindo de Hespanha como donzella da infanta D. Constança, noiva de D. Pedro, distinguiu-se por uma extraordinaria belleza. O retrato que temos a vista não dá senão imperfeitamente idéa do que devia ter sido como formosura, essa infeliz princeza (1). A physionomia é antes de umacreança ingenua que de uma mulher já no inteiro desenvolvimento de suas fórmas e de sua belleza. O rosto oval e comprido tem todavia um ar de recolhimento, pelo qual se póde adevinhar um coração capaz de gozar em silencio e de ser feliz sem ruido. E' elle sustentado por um pescoço alto e nevado, que fez cognominar a princeza-collo de garça. Os cabellos finos e abundantissimos estão dispostos á moda do tempo. A fronte é larga e pura, a bocca é pequena e discreta, os olhos não teem outra expressão senão a da ingenuidade. Não se pode dizer á que epocha da vida da princeza corresponde esse retrato; parece, porém, ser elle uma lembrança de sua mocidade, e referir-se ao tempo de sua vinda á Lisboa. Aquelle ar de innocencia e de singelesa espalhado sobre a physionomia de D. Ignez póde bem ter sido uma invenção do pintor que quizesse represental-a como o poeta. A' ser assim, porém, o artista não comprehendeu Camões.

A Ignez de Castro dos Lusiadas é a innocencia, sim, é a fraqueza, que estas duas palavras exprimem completamente: a misera e mesquinha; mas é tambem o amor, que é a força. Ora n'essa phy

(1) E' que se vê no livro-Varões e donas illustres etc.

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