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ultimo pensamento é de libertação. Entre viver escrava e morrer livre e pura, a morte lhe parecia um favor, quasi um bem. Dir-se-hia que ella queria morrer sobre o tumulo do heróe que a havia amado. Não o chama ella: um deus? Condemnada ao supplicio, só pede aos gregos que respeitem a virgindade de seu corpo, que nunca sentiu o contacto das mãos de um homem, e entreguem-n'o depois á sua mãi, que só poderia resgatal-o com lagrimas, ella a viuva de Priamo! Logo que chega o instante fatal, e todos, mesmo Pyrrho, desatam em pranto, Polyxena não chora mais; filha de troianos devia mostrar aos gregos que não temia a morte, e que se tinha chorado fôra pela sorte de sua cidade arrazada, de sua familia dispersa e de sua mãi infeliz! No momento de morrer esquece ella tudo para honrar o seu nome; tambem não cahe sobre o chão para opprimir com o peso da queda os manes de Achilles; sua morte é outra os joelhos vão cedendo, e, com os olhos voltados para o céo, ajusta ella as roupas para cahir, (tanto póde o pudor em uma natureza como a sua!) immaculada de qualquer olhar, digna de seu sangue!

E' á essa adoravel figura que Camões compara Ignez. Ella que tanto chorou, que tanto pediu, sempre nobremente! nos ultimos instantes recolhe tambem a dôr e serena o semblante com o olhar. « Ella com os olhos, com que o ar serena. >> E' assim que Ignez espera a morte,

<< Bem como paciente e mansa ovelha, »

e n'essa postura de suprema energia recebe no collo de alabastro as espadas dos assassinos.

Tal foi em vida, tal na morte, D. Ignez de Castro. A historia tem na sua galeria o retrato que d'ella fez o poeta ; tambem entre as martyres nenhuma inspira mais compaixão do que essa, desde Iphigenia, que abre o cerco de Troia, até Joanna d'Arc e Maria Antonietta.

Nunca o genio é mais digno de si e de Deus do que quando idealisa a innocencia e a desgraça!

Não deixou Camões sua creação de Ignez de Castro sem levantar-lhe um monumento na terra da patria. Mas como podia fazel-o quem não possuia quatro palmos de chão, onde ser enterrado? O primeiro architecto, o primeiro esculptor da gloria nacional, só tinha para pagar aos objectos de sua admiração a moeda do genio-a immortalidade. A' Ignez de Castro, porém, pagou outra. Ha em Coimbra, no antigo jardim da princeza uma fonte chamada-dos amores. Para que ella lembrasse eternamente o facto, deu-lhe o poeta uma origem sobrenatural. Forám as lagrimas choradas pelas filhas do Mondego sobre a sorte da joven martyr do amor, que se transformaram na agua pura d'essa fonte. As lagrimas das donzellas de Coimbra muitos as choram ainda hoje, e mais que no crystal da fonte em que se converteram, brilham ellas, como diamantes, na elegia do poeta, n'esse cantico de dôr o mais vivo de nossa lingua, n'esse poema de dezoito estancias, que parece escripto com o sangue mesmo do amante de Catharina.

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CAPITULO II

OS DOZE DE INGLATERRA

Não era possivel que faltasse ao poema de Camões uma inspiração, um quadro da idade media. A idade media apparece na historia como um tempo sombrio, como uma grande noite.

Uma invasão de barbaros cobre o mundo pagão e esconde em sua poeira as lettras e as artes. O que se faz durante esses dez seculos que se chamam -a idade media? Uma formação, a creação do mundo moderno sobre as ruinas do mundo antigo. Entre as duas civilisações há a infancia; entre os dois zeniths há a treva Durante dez seculos amontoam-se, atropellam-se, e depois assentam, desprendem-se e desenvolvem-se os elementos das nações de hoje.

Mas por ser a idade media esse longo e sombrio periodo de formação, é que tem muitas vezes os sentimentos ingenuos da adolescencia. A mais alta manifestação d'essa generosidade, d'esse viço de alma, d'essas aspirações ideaes foi a cavalleria; foi ella, em epochas de embrutecimento, o glorioso protesto do coração contra a força. A historia demonstra que a cavalleria não teve a extensão de uma instituição universal de honra e de valor; mas

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reduzida mesmo á alguns povos, ou á algumas almas, provou que havia aqui e ali em tempos tão sombrios uma claridade prematura.

O episodio dos „, doze de Inglaterra" é a alegre narração de um dos factos mais notorios da cavalleria.

Doze inglezes de alta posição offenderam outras tantas damas, mostrando-se promptos á renovarem a injuria perante quem ousasse defendel-as. Não houve em Inglaterra quem quizesse aceitar a defesa das damas, e o duque de Lancaster, sogro de D. João I, dirigiu-se á doze fidalgos portuguezes pedindo-lhes que fossem os cavalleiros das senhoras offendidas. Aceito o cartel, teve lugar o combate dos pares de Inglaterra com os cavalleiros portuguezes, que ficaram vencedores. Entre estes e á frente d'elles achava-se Alvaro Gonçalves Coutinho, por cognome Magriço.

Nenhum facto era mais apropriado do que esse para pôr em evidencia a gloria de Portugal, e o poeta fel-o da maneira a mais insinuante.

A offensa feita pelos cortezãos ás damas da côrte era a primeira violação das regras da cavalleria, que impunha respeito á mulher quasi com o mesmo rigor com que o impunha á fé e á honra. O que, porém, está, em frente d'esse mesmo codigo, acima de qualquer censura é a cobardia dos amantes d'essas damas, que por se temerem do poder dos adversarios, não ousaram a levantar a luva atirada com tanto desdem. O poeta não podia dizer-nos melhor do que por essa fórma que a Inglaterra nunca foi o paiz da cavalleria. Se vemos na sua historia um Ricardo Coração de L eão e um Principe Negro, são esses excepções notaveis e

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para cujo caracter concorreu poderosamente a vida aventureira do continente.

Emquanto nos pinta assim a Inglaterra, o poeta faz em uma oitava o mais alto elogio á côrte portugueza; n'esta todos julgam uma felicidade ser escolhido para um tal combate. O rei é o primeiro que quer partir, e n'esse movimento de generoso ardor vê-se logo a alma de D. João I.

Eis a oitava em que nos apparece a côrte do Mestre de Aviz:

« Já chega a Portugal o messageiro;
Toda a corte alvoroça a novidade;
Quizera o rei sublime ser primeiro,
Mas não lh'o soffre a régia magestade
Qualquer dos cortezãos aventureiro
Deseja ser, com fervida vontade;
E só fica por bemaventurado

Quem já vem pelo duque nomeado.

Tudo que havia de puro, de elevado e de nobre na cavalleria reunia-se n'esta memoravel empreza. Quando realisou-se ella, o cyclo legendario da instituição estava encerrado; mas as antigas virtudes e os finos sentimentos existiam ainda em algumas almas. Iam esses cavalleiros portuguezes combater em um paiz distante com os mais esforçados e dextros dos seus homens de armas, e no entanto nenhum d'elles hesitou.

O valor puro e sem mescla, de que os antigos paladinos haviam dado tão notaveis exemplos, é a primeira qualidade que dá o poeta aos heroes portuguezes; a segunda é porem-no ao serviço de uma causa nobre, sem indagarem da latitude e distancia dos lugares, onde tinham que defendel-a. Foi a cavalleria uma religião forte e moral, religião de poucas almas, sim, mas que unia todos

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