os seus crentes sob uma mesma bandeira e que fel-os, em tempos em que a idéa da patria não se tinha completamente desprendido dos preconceitos, dos odios e das divisões feudaes-, membros de uma unica familia. O respeito, o culto da mulher, que uma nação moderna, os Estados-Unidos, elevou á altura de uma virtude republicana, tanto como o valor e a coragem, dão á esse episodio do poema o colorido de uma lenda. Vejamos o combate. Já n'um sublime e publico theatro Se assenta o rei inglez com toda a côrte. Os divertimentos da idade media conservam ainda a ferocidade dos tempos antigos. Roma, nos seus melhores dias, não tinha maior festa do que os combates do circo; a cavalleria, porém, temperou com certa doçura essas luctas, e ainda que fossem ellas o espectaculo da força, eram tambem o da dextreza e o da magnanimidade. A honra impunha aos combatentes deferencias e respeitos, que mostram certa elevação de sentimento. A descripção, que fez o poeta da peleja e da victoria, é rapida, mas brilhante. Quanta recordação da cavalleria desperta a pintura de Camões! << Mastigam os cavallos, escumando, Os aureos freios com feroz semblante; >> não nos apparecem n'esses versos os antigos cavallos dos paladinos, unidos á elles na recordação da historia, companheiros de suas longas jornadas e de suas aventuras, e tratados sempre com aquelle respeito . «Che a buon cavallo dee buon cavallero, >> como diz Ariosto? Eram, porém, onze portuguezes que estavam para combater contra os doze pares de Inglaterra. Quem faltava ao combate? Magriço. Quando seus companheiros partiram, disse-lhes elle que queria ver o mundo, e em vez de seguir por mar atravessou a Hespanha e a França. A estancia em que Magriço falla aos outros cavalleiros é digna do poeta. Vêem-se n'ella dois sentimentos cada qual mais elevado : o primeiro é a confiança sem limite no valor dos outros paladinos, o segundo uma fé tambem inabalavel na propria estrella. Era grande o perigo para sua honra; um dia de demora fal-o-hia faltar ao combate! entretanto partio elle sem hesitar, certo de que, se não chegasse no dia, os onze portuguezes venceriam os doze pares: « Todos por mim fareis o que é devido, »> mas certo, ainda mais, de que nada impedi-lo-hia de tomar parte no desafio: «Rios, montes, fortuna, ou sua inveja, Não farão que eu com vosco lá não seja. » Vê-se em tudo isso o genio do poeta. Magriço, o protogonista, desapparece da scena, sem que, desajudados de seu valor, os outros duvidem um momento da victoria. Não esperam elles «Que as damas vencedoras se conheçam, Faltava um homem, mas o espirito da patria estava com os outros. Não é, porem, só para mostrar o esforço individual de cada um dos portuguezes que Camões demora a apparição de Magriço; é tambem para dar a côr dramatica ao torneio. Quantas vezes nas lendas da cavalleria o heroe apparece no momento em que menos é esperado decide da victoria? Tudo vai se consummar sem elles; o crime, o supplicio, o cembate vai ter lugar, quando na arena desponta vindo não se sabe de onde um cavalleiro mysterioso; se é a honra, a fama, a belleza de uma dama que está empenhada -no juizo de Deusvê-se um d'esses guerreiros tomar as côres da dama offendida, entrar na liça, arriscar a vida, e partir depois da victoria coberto ainda de poeira para em outro lugar defender a innocencia e a fraqueza. Walter Scott pinta-nos por vezes a apparição de um desses heróes, sob cuja armadura descobrimos logo um libertador, um Ivanhoe, na raia da arena no momento em que a vida „de uma mulher estava abandonada e sem esperança. Estão os onze portuguezes em frente ao doze de Inglaterra; vai principiar o combate, << quando a gente Começa á alvoroçar-se garalmente. >> Era Magriço que apparecia; seu aspecto é o de um heróe. Entrando na arena depois de uma longa viagem saúda o rei e as damas e toma lugar no meio dos seus, «< A' quem não falta certo nos perigos. » A dama, da qual era elle o campeão, e que se vestira de preto por se ver desamparada, logo que se vê defendida por um tal braço cobre-se das côres mais brilhantes. Eis os versos sempre admirados em que o poeta nos pinta com grande mobilidade o combate: « Já dão signal, e o som da tuba impelle << Dos cavallos o estrépito parece Qual co'o cavallo em terra dando, geme, « Algum d'alli tomou perpetuo sono Mais acham já que arnez, escudo, e malha. >> وو O poeta começou a pintura com dois ou tres traços proprios das narrações de cavalleria: „, fere a terra fogo" lembra bem o golpe de Roland em Ronceveaux;, o chão a tremer sob o estrepito dos cavallos“ dá a idéa de uma força fabulosa desenvolvida na acção, porque de uma semelhante imagem usou elle para pintar-nos o tropel dos cavallos em Aljubarrota: «treme a terra.... os valles soam >>> „qual do cavallo vôa, que não desce" é outro exemplo d'esse arrojo de expressão proprio das legendas da idade média, porque se sabe bem que um cavalleiro antigo era uma columna de aço; o poeta mesmo disse fallando da maneira porque se vestiram os portuguezes: « Armam-se d'elmos, grevas, e de arnezes, » e ainda que sob essa couraça elles tivessem muita agilidade, o que dá idéa de uma força extraordinaria, a expressão „vôa“ applicada á quéda pesada de um d'esses homens de ferro é de cunho puramente legendario. Camões, porém, não se compraz em descrever batalhas, como já o dissemos. Elle o diz com visivel referencia aos contadores de seu tempo: << Gastar palavras em contar extremos E' d'esses gastadores que sabemos Maus do tempo, com fabulas sonhadas. » N'essas poucas palavras está uma aspera censura á litteratura já pueril da cavalleria; a critica verdadeira d'esse genero de fabula devia ser feita depois em uma das mais engenhosas obras do espirito humano-o Don Quichotte; depois, porém, de Camões Tasso devia ainda pintar com grande engenho os combates de Tancredo e Clorinda. A victoria fica com os portuguezes e as damas vencedoras. Magriço apenas muda de theatro e vai a Flandres defender a honra da condessa D. Leonor. Magriço será sempre o representante da cavalleria em Portugal. A bella narrativa de Velloso tira de sua collocação no poema um grande realce, pois, que é feita entre a ordem de Neptuno e o desabar da |