Publicado, porem, o poema, começou esse homem que não se lembrava da fome, quando tinha ainda uma estancia que compor, á sentir o pezo da realidade. Elle que tanto fiava de seu livro, via-se, quando seu nome já era celebre e depois de impressos os Lusiadas, desterrado e só no meio do paiz. Depois veremos a extensão da desgraça de Camões, por agora vejamos como seu destino está entrelaçado com o de Portugal. Os oito ultimos annos da vida de Camões são os mais sombrios da historia portugueza; seus biographos pintam com as mais negras côres essa épocha de aviltamento e infortunio, que nos entristece ainda hoje. Estava Portugal nas mãos do joven rei, neto de D. Manoel reinado nenhum foi mais infeliz do que o seu. Muito moço, fiando tudo de seu talento, de uma audacia cega, promettia elle desde o começo ser o flagello de um paiz, já de si exhausto por ter realisado uma obra superior ás suas forças. Entre os annos mais tristes de que a historia faz menção está esse em que appareceram os Lusiadas. Esquecendo-se tão maravilhoso clarão foi um anno de desolação e trevas. Na Inglaterra morria no cadafalso o duque de Norfolk, o que annunciava a morte de Maria Stuart, essa bella criminosa sobre a qual a historia não pronunciou ainda seu ultimo juizo; a Polonia via extincta a dynastia dos Jagellões e com o principio da electividade do rei adquiria o germen de seu futuro desmembramento. O que, porém, escurece data de 1572 é a noite de 24 de Agosto. Pariz a foi theatro da mais sanguinolenta das carnificinas humanas a traição, a cobardia, o fanatismo, o odio, todos os baixos sentimentos, tiveram uma medonha explosão. A França atravessou antes e depois epochas difficeis, mas as tradições do Terror e as da Communa não causam uma impressão igual á desse immenso assassinio, friamente meditado, hypocrita e cobardemente executado no silencio da noite, á um signal do rei e em nome de Christo. Foi n'esse anno de sinistra recordação que appareceram os Lusiadas. Em Portugal a scena era tão negra como na Europa. Havia-se ferido no anno anterior a grande batalha de Lepanto e havia já em Lisboa os materiaes de uma nova cruzada, proclamada pelo Papa. O Tejo estava coberto de náos destinadas á tomar posse do Bosphoro; os confederados queriam d'essa vez aceitar a conselho do joven D. João d'Austria e ir com elle á Constantinopla. Uma tempestade das que mais destruição teem produzido cahio sobre a cidade de Lisboa, e de todos esses navios não ficaram senão as taboas fluctuantes. As riquezas immensas, que elles haviam custado, afundaram no rio,e essa destruição foi para Portugal um novo golpe da fortuna. Sem insistir em outros tantos revezes, com que foi o paiz experimentado n'esses ultimos oito annos de liberdade, ha dois factos por si sós muito eloquentes que não podem omittir-se. A joven e bella princeza, mãi de D. Sebastião, falleceu em 1573 e com ella perdeu o paiz uma voz que se faria ouvir do rei antes de cada loucura, e que talvez, por ser a de uma mãi, pezasse no seu animo. Em 1574 teve lugar a expedição de Tanger, expedição funesta e que devia, por ter sido esteril, determinar uma segunda, que realizou-se cinco annos depois. Em 1579 partiu de novo D. Sebastião para a Africa; nem as ultimas palavras de sua avó moribunda, nem o derradeiro pedido de seu mestre, nem a dor do povo, visivel em cada rosto, poderam impedir ou sustar essa successão de desgraças. Diz Faria e Souza que muito soffreu Camões por ter sido escolhido pela côrte para seu poeta Diogo Bernardes. A versão do critico é verosimil. Ao terminar os Lusiadas, Camões pedio á D. Sebastião, como o havia pedido na dedicatoria do poema, que passasse á Africa; vimos que esse sonho do joven rei teve nos versos do poeta uma eterna consagração. O Sr. Juromenha, que julga pouco provavel ter tido o poeta um tal desgosto chega á conjecturar, e parece-nos) sem fundamento historico, que elle se achava na jornada de Tanger. O certo é que ao escrever os ultimos versos do poema, Camões sonhava ainda ser o cantor de uma nova epopéa. Eis as duas oitavas em que o pensamento do poeta é expresso de um modo a não consentir duvidas: << Pera servir-vos, braço ás armas feito; De quem virtude deve ser prezada. Se me isto o céo concede, e o vosso peito << Ou fazendo que mais que a de Medusa, Não devia, porém, ser Camões o cantor d'essa triste expedição, nem devia o rei ser d'ella o heróe. Se na guerra que o joven rei ia levar á Africa alguem estava destinado á representar um glorioso papel, não era esse D. Sebastião. Partia elle para a Mauritania, não como Godoffredo de Bouillon para a Palestina, á resgatar do dominio dos infieis o tumulo de seu Deus; partia, como outr'ora Omar, para abrasar o mundo, e impôr pela espada a hegira, o Kalifado e o Coran. As primeiras cruzadas foram a consequencia do espirito de cavalleria, que perfuma ainda hoje as recordações monasticas da idade media. Eram a fraternidade do Occidente em nome de Christo para salvar da profanação os lugares santos. O enthusiasmo pela fé era nacional em cada paiz, universal no mundo. Não havia ainda os jesuitas, não havia o Santo Officio. A religião não queria então vencer nem pela hypocrisia, nem pelas fogueiras. A cruzada, porém, que D. Sebastião ia iniciar em 1578 vinha depois da Reforma e da Inquisição. A Reforma tinha espalhado pela Europa o espirito da independencia moral do homem e da dignidade da razão; depois d'ella não se podia mais galvanisar o passado, menos sacrificando á esse pomposo embalsamamento o sangue das novas gerações. A Inquisição por seu lado tinha dado á liberdade de consciencia a sancção do martyrio; d'essa fumaça, que toldava o céo da peninsula iberica, desprendia-se, como um globo de luz, a emancipação religiosa da alma. Depois d'esses dois acontecimentos tão contrarios não era dado esperar uma nova cruzada. Os reis podiam condemnar, os padres podiam queimar, mas a fé não podia mais vencer pelo sangue. A bulla de Gregorio XIII era então o que é hoje um Syllabus: uma arma quebrada, uma palavra sem echo. O fanatismo levava D. Sebastião á Africa, e mais ainda lá o levavam os ciues de uma ambição sem limites. Se a terra só produz os fructos das sementes que recebe, a intelligencia do joven rei tambem só desenvolveu os principios, que cuidadosamente n'ella havia semeado um jesuita, o padre Luiz Gonçalves. A sociedade de Jesus é hoje, e mais exaggeradamente o foi nos tempos dos Laynez e dos Borjas, um verdadeiro exercito, um como sacerdocio brahmanico. Obedecia ella toda á um pensamento: janisaros do papado, foi ella, por assim dizermos, a guarda pessoal da Santa-Sé. A educação dos principes, quando confiada de algum dos discipulos de Ignacio de Loyola, era objecto de um estudo apurado feito sob as vistas da sociedade. Era preciso que da officina sahisse um instrumento apropriado ao seu desenvolvimento; para isso, com grande conhecimento da natureza humana, iam elles depondo lentamente no espirito de seus reaes pupillos germens, que haviam de desabrochar no throno. O futuro da Companhia dependia da habilidade d'esses criadores de principes; matavam ou transformavam as tendencias que iam despontando na |