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Diz-se que o poeta logo que o rei partiu para a Africa, começou a escrever um poema allusivo; um seu amigo Bernardo Rodrigues chegou a ler esse trabalho. Logo que soube, porem, da sorte da expedição, queimou Camões o que havia escripto, e a posteridade ficou sem ver essa obra, na opinião de Rodrigues, superior aos Lusiadas., Com quanto pezar temos á lamentar, e por tantos motivos, que o poeta não tivesse occasião de celebrar esta expedição militar!" exclama um de seus biographos. (1)

O genio tem uma missão certa, só as grandes idéas o fecundam e n'essa campanha de Marrocos nenhuma grande idéa se via inscripta na bandeira de Portugal. Não era pois essa a acção que devia inspirar á Camões um poema maior que os Lusiadas. Na idade á que elle tinha chegado, e no estado de espirito em que se achava, não poderia de certo compor um novo poema; se o compuzesse, porem, uma cousa havia de faltar-lhe. Seria essa a inspiração. Poderia elle descrever com seu grande talento de pintor a natureza, o céo, a vegetação, as areias, os costumes, e o povo da Africa: a acção, porem, seria monotona e esteril como o deserto, em que ella se ia desenvolver.

Não se compõem em uma vida dois poemas como os Lusiadas; para a gloria de Camões, não tiveram, porem, elles esse irmão, fructo tardio da velhice e da miseria. Ao lado do grande poema de Portugal, o de Alcacer seria o signal da decadencia do poeta; quem os comparasse perguntaria

(1) O Sr. Juromenha.

como o genio pode produzir tão diversas creações, e como pode faltar-lhe instincto bastante para salvar a sua gloria aos olhos da posteridade. Esses dois poemas seriam a imagem das duas epochas da vida de Camões: um pareceria filho do ideal, da mocidade e do amor, o outro seria pallido e frio, como se a morte houvesse n'elle collaborado. Mas não estava reservada ao poeta a triste sorte de mutilar sua propria fama. Se a expedição terminasse por uma victoria, mesmo assim a morte viria interromper o doloroso trabalho, á que o poeta ia sujeitar a imaginação, para d'ella tirar ainda algumas scentelhas. A batalha de 4 de Agosto, porém, foi um desastre, e teve elle de entregar ás chammas as paginas escriptas de seu poema.

Para uma alma, como a de Camões, nenhuma expiação poderia ser mais cruel do que essa; talvez pensasse elle então em lançar ao fogo, mas ellas corriám já o mundo, as oitavas dos Lusiadas, em que a expedição á Africa fôra descripta, como um grande commettimento do patriotismo e da fé A dor de Camões n'esse momento devia ter sido intensa. Os contemporaneos dizem que elle ficara como assombrado depois de ter queimado o seu livro. E' que no coração do poeta passou-se uma scena das mais longas e das mais pungentes; para elle que amava a patria com uma dedicação sem limites, a idéa de ter concorrido para seu infortunio e talvez para seu captiveiro era um remorso, uma aflicção immensa ; isso juntava-se aos soffrimentos pessoaes, e a vida lhe parecia um mal de que a gloria não attenuava o excessivo rigor.

Ao queimar o poema, viu elle mais claramente que essas cinzas foram o seu sonho, e que esse sonho havia sido a morte do paiz. Na explosão da dor o poeta não pensou em justificar o seu erro, antes exaggerou a influencia de seus versos no animo do joven rei. Talvez, se a scena que Garrett nos pinta no seu Camões foi real, lembrasse-se elle da figura de D. Sebastião, expansiva e radiante, ao ouvir em Cintra tão bem pintada em magnificas estancias a aspiração, que foi a de toda sua vida. O jubilo do rei ao ver tão bem comprehendida por um grande genio a politica de seu reinado, seu sorriso á cada uma dessas lisonjas que elle tomava sinceramente por homenagem, seu enthusiasmo por essa gloria que lhe apparecia tão pura e tão brilhante logo nas primeiras oitavas do poema, todas as recordações da entre

em Cintra com D. Sebastião, deviam ter vindo á memoria do poeta como queixas amargas da patria. Pois essa que elle amou com toda a força de seus sentimentos, que collocou no lugar de seu coração onde tinha vivido Catharina, haveria de accusal-ò do seu tumulo-como o propheta e o oraculo de sua desgraça? Essa idéa foi para Camões fonte de novos e extraordinarios soffrimentos; e, (pode-se conjecturar,) apressou sua morte. A' historia cabe, porem, absolver o poeta de qualquer complicidade n'esse desastre de Africa. Elle foi apenas um cantor e um soldado. Na immensidade de seu amor, só podia dizer á Portugal, como dissera ao rei:

<< Braço pera servir-te ás armas feito,
Mente pera cantar-te ás musas dada. »

Elle queria renovar as tradições de D. João II, sem saber se o joven rei era digno de sustentar a bandeira lusitana. Não póde, porém, o poeta ser responsavel por uma expedição de todo o ponto imprudente, sem logica e sem direcção, pela loucura, para melhor dizermos, de um rei aventureiro. Se a historia assim falla, e com tanta verdade que para ella Camões é a representação viva da patria, o poeta, mesmo por amar extremosamente seu paiz, não foi tão indulgente comsigo; bem pelo contrario tomou elle em sua consciencia uma parte de responsabilidade no desastre, e d'esse remorso ficou tão pungido que poucos mezes depois expirava em um abandono completo de espirito e de coração! Não era pois a expedição de Africa, considerada sob ponto algum de vista, o que podia reanimar o genio do poeta: era ella, sim, o veneno que devia matal-o!

CAPITULO II

DESGRAÇA E FIM DE CAMÕES

Ninguem descreveu ao vivo o interior da casa de Camões; essa lucta quotidiana da miseria com a fome, esses dialogos do genio com a sorte, não nos foram transmittidos pelos contemporaneos.

O genio foi muito tempo um privilegio fatal; mas á que se pode imputar a alliança tão antiga do talento e da miseria? porque as maiores intelligencias attrahem o soffrimento, como as alturas o raio ?

Não se pode crer na influencia de um destino occulto; a fatalidade de que fallava de seu leito de morte a mais bella das nossas esperanças desfeitas, (1) talvez pensando em ser elle a victima de seu coração e de seu talento, não tem valor perante a razão. Se o destino dos poetas fosse soffrer, quem poderia accusar a sociedade que os deixa cumprirem sua missão? e por outro lado que lei moral seria essa que só não se executa n'aquelles que prostituem e vendem a musa ao ouro dos reis e dos poderosos?

(1) Alvares de Azevedo.

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