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CAPITULO III

CAMÕES NA INDIA

Em 1553 partio Camões para a India. Tinha elle voltado de Ceuta, para onde partira em 1516, e d'onde trouxera em seu rosto uma honrosa cicatriz. Em 1550 alista-se para seguir para o Oriente, mas só parte tres annos depois. O que póde explicar-nos todos esses actos do poeta, essas resoluções tão ousadas e tão subitamente trocadas por outras, essa viagem para um mundo tão distante?

Não se póde escrever com exacção a historia da alma do poeta. A collecção de versos que nos deixou, e nos quaes elle lançava suas impressões de momento, suas magoas e suas alegrias, não tem ordem chronologica, e não se sabe nem quando nem onde o poeta os escreveu. Era, porém, Camões uma alma que só obedecia á nobres e poderosas attracções.

Algum movel honesto e desinteressado, alguma paixão de alma grande o teria por certo levado a tão distantes terras. Quem sabe se o tumulo de Catharina não tornava já para elle em um vasto deserto o paiz de sua infancia e de seus amores? Quem sabe se, desilludido do amor, não buscava elle avidamente na gloria uma felicidade que estava condemnado a não encontrar na terra? Quem sabe mesmo, como o dissemos já, se não obedecia elle a uma affinidade intima de seu genio para os lugares, o mar, e a scena da epopéa que elle queria cantar?

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O certo é que em 1553 partio o poeta para a India em um profundo desalento. E' elle mesmo quem o pinta em uma carta celebre. E' elle quem diz-nos que não queria que em si ficasse pedra sobre pedra." Medonho esboroamento de uma alma como a delle! „E assim posto em estado, que me nam via se nam por entre lusco e fusco, as derradeiras palavras que na náo disse foram as de Scipião Africano: Ingrata patria, non possidebis ossa

mea."

Dessas palavras fez-se uma accusação ao poeta, mas quem o lê o absolve. Disse-as elle, sim, mas disse-as em sua magoa, quando elle mesmo só se via atravez das sombras, que o desfallecimento lançava em seu coração. „Nam me via se nam por entre lusco e fusco." Quando, ao afastar-se da patria, Camões pronunciava baixinho essa maldição contra ella, desvendava-se-lhe já no mar o segredo de seu destino e a vasta extensão de sua gloria!

A vida do poeta na India póde ser contada em bem poucas palavras. No governo de D. Affonso de Noronha, acompanhou-o o poeta em uma expedição

contra o rei de Chembé. No de D. Pedro de Mascarenhas, acompanhou a expedição de Manoel de Vasconcellos, voltando em 1555 á Gôa, onde encontrou Francisco Barreto com o titulo de governador. Foi no governo deste que soffreu Camões a pena de um novo desterro, e dessa vez para a China.

Qual foi o crime do poeta assim tão severamente punido? Uma satyra, um riso de escarneo de sua alma cheia de ideal diante da humilhação do nome portuguez no Oriente, que elle tanto tempo enchera!

D. Francisco Barreto, e é grande a reacção operada em seu favor, póde ter sido um militar senhor de si no perigo e um bom governador da India. Não lhe disputaremos nenhuma de suas glorias tão pobremente enterradas em um sepulcro desconhecido do deserto africano; mas D. Francisco Barreto merece bem a sentença da historia, que ligou sua fama á de Camões.

O desterro do poeta para à China foi uma pena injusta e uma pena cruel. O bispo de Vizeu, tão sympathico ao juiz, condemna a sentença do modo mais eloquente:,, confesso, diz elle, que todo o bom Portuguez, ao lembrar-se do naufragio na embocadura do Mecon, deve estremecer com a idéa de que podiamos ter por este meio a desventura de não lograrmos a lição deliciosa, e os creditos que ganhamos com os Lusiadas. “

Por uma satyra era o poeta condemnado, depois de tantos serviços, a atravessar os mares tormentosos da China; por uma satyra escapou elle de morrer na foz de um rio asiatico ou, o que talvez fosse o mesmo para a gloria portugueza, de ver arrebatadas pelas ondas as folhas de seu poema.

Grande era na verdade o crime assim tão severamente punido! Uma satyra feita contra uns fidalgos da India, e uma allegoria entre Babylonia e Sião, a saber, Gôa e Lisboa! Já, ao ver a capital do dominio portuguez no Oriente, Camões havia della escripto:,, mãi dos viloens ruins, e madrasta de homens honrados." E de facto nella só florescia o trafico, a exploração immoral do velho prestigio da metropole.

Não podia, não tinha Camões o direito de satyrisar esses,, que haviam convertido o astro do puro, nobre e désinteressado esforço portuguez em cubiça sanguinaria de mercadores?" (1) Tinha mais que o direito, tinha o dever. Em certas epochas a satyra é o ultimo refugio da intelligencia opprimida: Roma explica, e, o que mais é, exige Juvenal.

Um dos espiritos mais athenienses deste seculo, cujo destino parece ter-se unido, como o de Camões, á desgraça da patria, (2) escreveu alludindo transparentemente ao segundo imperio: viram-se tempos tão desgraçados, em que o sorriso de um homem de bem era a unica voz deixada á consciencia publica,

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Desterrado para a China, foi Macau o lugar de seu exilio. Ahi dizem que exerceu elle um cargo de justiça, provedor dos defuntos.

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Foi no isolamento de Macau no silencio da gruta de Patane - apenas quebrado pelo ruido

(1) A. Herculano. Annaes de D. João III. Introducção. (2) Prevost-Paradol,

monotono do mar, que Luiz de Camões escreveu a maior parte de seu poema. Nada naquelles sitios lhe fallava da patria, e por isso tanto mais se lhe gravava na mente a imagem della. Quem vive fóra de seu paiz, muitas vezes o esquece, se encontra uma hospitalidade tão franca como a da familia, se vive no seio da mesma civilisação, e sobretudo se descobre o amor; mas quem vive, por assim dizer, em outro mundo, separado por centenas de leguas do seu, coberto de monumentos de idades passadas, e de uma população diversa em tudo da do Occidente, em côr, religião, costumes, lingua, idéas e sentimentos, quem vive assim tão longe da patria é um desterrado que não a esquece nunca. Na solidão da costa da China o poeta revolvia na memoria as lembranças de sua mocidade, tão cedo consumida! aquella pura e ideal creação de Deus e de seu genio, Catharina, elle buscava vêl-a no espirito alongando os olhos pelo mar.

Foi então que, elevando sua alma acima das sombras do desterro, Camões compoz os Lusiadas. De volta a Gôa, naufragou na embocadura do Mekong.

Quem não tem visto o quadro do naufragio de Camões? A legenda consagrou a tradição popular.

No meio das ondas o poeta salva com temeraria audacia as folhas dos Lusiadas, para poder depois escrever com a mais palpitante eloquencia: «Este receberá placido e brando

No seu regaço os cantos, que molhados
Vêm do naufragio triste e miserando
Dos procellosos baixos escapados,

Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado

N'aquelle, cuja lyra sonorosa

Será mais afamada que ditosa. >>

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