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PARTE PRIMEIRA

A IDE'A DO POEMA

I

As epopéas nacionaes são na familia epica o ramo mais velho, ainda que guardem eternamente um perfume de mocidade e de originalidade, que o outro não tem. Este segundo ramo é o dos poemas epicos propriamente ditos, ou poemas individuaes.

A differença entre as duas especies da epopéa é a mesma que entre as duas sociedades que se desenham n'ellas. A infancia da humanidade, por não ter monumentos que a deixem comprehender perfeitamente, é ainda hoje desconhecida. Não tanto a infancia, deveriamos dizer, como a transição d'essa para o segundo periodo, para a adolescencia. Talvez entre todos os povos, em todas as latitudes, os primeiros tempos fossem assignalados pela barbarie, que as raças indigenas ostentam ainda hoje na America e na Oceania. Admittamos

mesmo que o caracter da raça branca, sua intelligencia, seus instinctos tivessem tornado mais curto esse periodo, talvez de seculos, em que a alma existiu sem um raio do ideal nem do dever.

A adolescencia foi, em relação ao homem, um progresso maior do que a virilidade. A civilisação, as artes com a plena noção do bello, a religião com a do bem, a justiça organisada, a democracia, todos os productos do desenvolvimento dos povos, são comparativamente um menor adiantamento que a primeira fórma de sociedade introduzida entre os homens primitivos, nomades, errantes e livres.

A primeira mocidade da familia aryana foi a idade de oiro da humanidade. A primeira organisação de uma sociedade estavel é o facto principal da historia; d'elle sahiu tudo que existe, foi elle a condição da vida de tudo; entretanto a historia não póde contal-o, da mesma fórma que o homem não póde contar o seu nascimento. N'esses tempos primitivos, em que o historiador não penetra, penetra o poeta; é elle quem reconstroe esse passado para sempre perdido, quem reanima com uma ficção essas idades que não deixaram traços, e de que não se conhecem os fosseis. Moysés e Homero são os poetas da adolescencia humana. O primeiro vai mais longe, chega á genesis da humanidade, conta-nos a apparição do primeiro homem sobre uma scena creada, illuminada, plantada e povoada para elle; o segundo descreve-nos as idades da revelação humana, em que o ceo estava ligado á terra.

Mas como se produziu o cyclo epico? como nasceram os poemas homericos? Eis uma questão

que tem agitado os criticos do seculo, e que parece não estar esgotada.

Os povos, n'esse periodo que precedeu ao de uma civilisação bem definida, sem alphabeto nem chronicas, celebravam em cantos os feitos de seus maiores perpetuados e achrysolados pela tradição. Na idade patriarchal, quando o poder legitimo era o do chefe da familia, que conduzia o rebanho como pastor, sentava-se á tarde á porta da tenda como juiz, e fazia sacrificios a Deus como pontifice, a immortalidade, á que aspilavam os heroes, era que seus nomes fossem rembrados e abençoados pelos anciãos e aprendidos ao calor do fogo pelos meninos da tribu.

Havia, porém, um elemento de chronica, uma fórma imperfeita de historia, que se chamava o péan; esse repetia-se de pai á filho, e conservava para uma geração os feitos da outra. A idade legendaria sobretudo viu desenvolver-se esse hymno. As familias formaram a sociedade e a realeza levantou-se no meio d'ella como um grande patriarchado do povo; guerras longinquas foram. tentadas, e o primeiro fermento da gloria das armas envenenou para sempre, lançado na fonte, o coração dos homens.

O cyclo troyano foi o mais celebre da Grecia heroica. Durante muitos annos a imaginação dos poetas colheu as flores d'essas tradições.

Eram os seus cantos mais do que a narração de scenas tragicas e de grandes victorias; eram os hymnos sagrados, em que a gloria dos deuses resplandecia ao lado da de Achilles e de Ajax.

Aliturgia era verdadeiramente epica. Essa linguagem divina fallava á um tempo á todos os sen

timentos: ao da gloria, ao da patria, ao de Deus, ao amor, e por isso a nação aprendeu os cantos, até que um dia a memoria do povo achou-se na posse de muitos poemas. O Homero que surgiu então foi o organisador, ou o auctor dos poemas que tem o seu nome? A Grecia não soube a verdade á esse respeito, não a saberemos nós.

Fosse, porém, Homero um homem, ou um grupo, os seus poemas tem um caracter distincto das epopéas individuaes; teve elle de dar uma fórma ás legendas gregas, teve de renovar em um mais sublime metro as tradições nacionaes. A Iliada não pareceu á ninguem o trabalho de um genio, pareceu a agglomeração das lendas de um povo. Escripta em um verso tão elevado quanto claro, tinha a altura e a transparencia de um bello ceo; nobre no sentimento, generoso, religioso, e antes que tudo grego, era realmente poema da Grecia legendaria. E' por isso que se póde dizer que esses poemas são a expressão de sua epoca, por que correspondem-lhe á todas as necessidades, manifestam-lhe todos os sentimentos, passam do genio do poeta para a memoria do povo, e são, apezar de toda a sua sublimidade e por causa d'ella, a linguagem mesma de uma geração primitiva e ingenua. A Iliada é o livro da historia, da moral, da politica de um povo antigo; é a Biblia da Grecia. O genio de um homem podia tel-a concebido, mas só o genio de um povo poderia tel-a realisado, com tal vastidão, tal grandeza e tanta simplicidade. A parte de Homero póde ser grande no poema, mas é pequena ao lado da do povo. Convem não esquecer que esse poema não tem uma perfeita unidade, que parece duas acções epi

cas, duas epopéas fundidas em uma, a de Ilion e a de Achilles. Como quer que se julgue, o poema é uma epopéa nacional, a saber a agglomeração de muitas lendas, o livro da lei, das tradições, dos oraculos; a expressão em verso dos sentimentos do povo, a linguagem divina da admiração e da esperança nacional; cada um queria aprendel-o depois de tel-o ouvido, porque antes todos o sonharam. Como differe, porém, d'esse monumento de uma sociedade nova o monumento epico das idades litterarias, baptisadas sob o nome de um homem, como os seculos de Augusto, dos Medicis, e de Luiz XIV! Como differem mesmo d'essa simplicidade antiga, de que a Iliada é o mais notavel exemplo na familia aryana, como a Biblia o é na semitica, as producções de épocas de mais gravidade e seriedade, do que os seculos marcados com a effigie de um despota illustre! A fé primitiva, a expontaneidade, a ingenuidade e a virgindade do coração, e um aroma incomparavel de solidão, de madrugada, de vida que começa, de um mundo que se fórma, tudo que ha n'essas grandes florescencias das eras mythicas, chamadas as epopéas, não existe nos poemas individuaes. A Eneida é de certo escripta em verso como a Iliada, sobre o plano da Iliada; mas quem não reconhece logo em uma o engenho litterario de um poeta, em outra o genio inventivo de um povo? quem não vê que uma reflecte a civilisação romana, com suas convenções, sua medida, sua arte poetica, sua mythologia, e que a outra é a fórma ampla, vigorosa, original, de um povo adolescente ?

As epopéas formam-se sem esforço pelo lento trabalho dos seculos. Cada poeta liga á essa ca

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