deia das tradições cantadas um novo élo; a memoria do povo torna-se assim o pergaminho em que cada Aedes ou Skalda escreve o seu hymno. Em cada festa há um lugar para o poeta. Elle é o sacerdote da tribu, como Orpheu; é o oraculo, o guerreiro, o legislador, a tradição viva. Deliciosa vida a d'esses tempos, que não podem ser comparados ao nosso pelo progresso material, nem pelo adiantamento das sciencias, e em que, todavia, o genio tinha um culto, e a intelligencia representava o papel de predestinada! Era por esse respeito religioso, que cercava os homens de genio, que a missão do poeta era sagrada, e que todos emulavam em dar aos mysterios, ás legendas, aos mythos, e ás tradições populares uma fórma, ao mesmo tempo sublime para ser admirada, e simples para ser comprehendida. Com o trabalho de duas gerações a epopéa estava feita; das antigas epopéas homericas só nos restam duas, mas o seu numero devera ser muito maior. Do cyclo epico talvez só possuamos as obras primas. E' assim que se formam essas narrações seguidas em um metro uniforme, é assim que ellas gravam-se lentamente na memoria dos rhapsodas, até que um dia quando o povo recebe o alphabeto fixam-se por escripto em uma fórma definitiva. Poder grande de invenção é por certo esse das eras primitivas em que sem o auxilio do alphabeto compôem os poetas, não somente cantos isolados, como os que formam o cancioneiro de Portugal e Hespanha, mas poemas historicos, religiosos, politicos e guerreiros como a Iliada! O poema individual, os Lusiadas por exemplo, forma-se de um modo mui diverso. Lendo os outros poemas, Camões viu que eram elles os mais altos vôos do genio humano, e quiz desprender o seu. Mediu seu talento com a segurança de quem realmente o possue, e não lhe viu fronteiras; desde então sua musa facil, amorosa, terna e melancholica, tornou-se a musa epica, e no fim de alguns annos realisou elle o que entre os povos adolescentes é trabalho para seculos, ainda que as qualidades intrinsecas de um e outro momento não sejam equivalentes. Eis porque nós dissemos que traços profundos separam os dois ramos da familia epica; um não tem a frescura de sentimento, o viço de mocidade, o enthusiasmo religioso, a fé sincera, a solemnidade e a uncção de um oraculo, que existem no outro; um é a resultante do genio de muitas gerações, o outro é o esforço de uma unica intelligencia. Não conheço prova mais maravilhosa e esplendida do genio, diz Macaulay fallando de Milton, do que um grande poema produzido em uma idade civilisada. „, Os grandes poemas são a vegetação luxuriosa de um mundo novo; tentar renoval-os depois que sua época passou, é querer reproduzir a creação. Essa obra alguns poetas realisaram-na, màs o que elles não poderam fazer, foi tirar ao poema o reflexo de seu tempo, nem dar-lhe a côr local de uma outra sociedade. Os grandes poemas das idades civilisadas são os maiores esforços da intelligencia no mundo; um homem por si só faz o trabalho de um povo, alguns annos produzem o fructo de seculos. Se nas epopéas nacionaes ha toda a novidade de coração e de idéa, propria de um povo adolescente, o merito não é do poeta, é de seu tempo. O poeta que cantou a guerra de Troia não tinha mais genio que o cantor do descobrimento das Indias, o que se deve dizer é que o seculo XVI não é o mesmo que o seculo pre-historico em que Ilion cobriu de suas cinzas o solo Troiano. A differença pois que se nota entre os dois grandes ramos da epopéa-a nacional e a individual é o resultado da differença existente entre os dois estados de civilisação que se representam por esses monumentos. De todos os poemas o que mais se approxima da epopéa nacional é os Ĺusiadas. Elle tem, sob a forma medida, artistica, de um seculo litterario, a fé ardente, o patriotismo puro, o culto das tradições populares de idades menos adiantadas; é elle tambem o deposito das lendas, dos fastos, e das lembranças do povo; é, como a Iliada foi o poema da Grecia legendaria, o poema do Portugal heroico. Esta unica vantagem dos Lusiadas faz delle na escala epica o segundo dos poemas, e de seu autor um dos genios mais vastos que a humanidade já viu surgir em seu seio. Camões deu a seu paiz um poema ungido dos sentimentos mais puros e estremes; escreveu sob a fórma epica a historia toda da monarchia; realisou por si só a obra dos antigos Aedes e dos Skaldas do norte; fez, em uma palavra, em pleno seculo XVI- depois da imprensa e da inquisição, um poema nacional! II Já a Eneida e a Divina Comedia existiam quando Camões compoz os seus Lusiadas; mas como poema nenhum dos primeiros vale o segundo. Nos primeiros cantos de Virgilio ha certo movimento que nos lembra a Iliada; a narração de Enéas é monumental; mas o resto do poema, exceptuadas notaveis descripções, como a do Tartaro, é diffuso e sem interesse. Turnus, rival de Enéas, enche o poema com suas luctas, e não tem importancia historica; a acção passa-se nos dominios da lenda, mas já sem o colorido nem a naturalidade da Iliada: é que Homero encontrava as lendas já creadas pela imaginação do povo, e Virgilio as tirava da sua. O leitor littterario admira, na verdade, sobretudo em Virgilio a suavidade de sentimento que o distingue, e á cada pagina da Eneida encontra um thesouro escondido. O poema epico, porém, é outra coisa; elle deve ser um todo harmonico e grandioso, não deve tanto agradar pela delicadeza e enleio da phrase como pelas concepções, pela idéa, pela acção; não deve ser admirado nas particularidades, senão depois de haver deslumbrado o povo por sua construcção, por suas grandes linhas, por sua symetria. São assim as cathedraes gothicas: o observador não se demora no cinzelado das portas, no angulo da ogiva, nos entalhos e no mosaico, senão depois de ter contemplado o enorme vulto de pedra, e de ter seguido com os olhos as linhas 1 agudas que sobem para o ceo e descem para a terra, como a escada de Jacob. O que fica na memoria, o que se desenha aos olhos de quem viu uma dessas construcções da arte christã é o perfil da cathedral, tal qual se a vê de longe, em um crepusculo da tarde. O poema epico deve ter uniformidade, symetria, e igualdade, sem as quaes não ha bello, nem na poesia nem nas artes. A Eneida nunca seria o poema de Roma. A Divina Comedia não é propriamente um poema epico; é um poema phantastico, é o sonho de uma imaginação tão grande quanto melancolica. Nada ha ahi de real; são espectros que fogem e se evaporam. Dante é um dos maiores genios que o mundo produziu, mas é da natureza de Shakspeare. O poeta de Hamlet e, o que mais é, de Julio Cesar não poderia fazer a epopéa da Inglaterra; cada genio tem uma vocação, quasi sempre visivel em suas obras e limitada por ellas. Duas ou tres figuras immortaes, que o propheta italiano nos deixou, mostram o poder de concentração que tinha o seu pensamento, e como podia elle em dois ou tres traços cercar de luz uma fronte. Mas esse homem extraordinario é a Idade média; sua musa é a theologia catholica; as sombras do exilio entram. por seu poema e envolvem até o seu paraizo. Um povo não póde repetir essas concepções sombrias, que nada têm com a sua historia. Mesmo um povo como a Polonia, na expressão do poeta anonymoo paiz dos tumulos e das cruzes-não comprehende essa linguagem de desespero e de amargura. Ha na Divina Comedia espalhados aqui e ali trechos admiraveis; mas o poema é sepulchral, é lugubre, e o povo quer outra coisa; elle quer a vida em |