timentos: ao da gloria, ao da patria, ao de Deus, ao amor, e por isso a nação aprendeu os cantos, até que um dia a memoria do povo achou-se na posse de muitos poemas. O Homero que surgiu então foi o organisador, ou o auctor dos poemas que tem o seu nome? A Grecia não soube a verdade á esse respeito, não a saberemos nós. Fosse, porém, Homero um homem, ou um grupo, os seus poemas tem um caracter distincto das epopéas individuaes; teve elle de dar uma fórma ás legendas gregas, teve de renovar em um mais sublime metro as tradições nacionaes. A Iliada não pareceu á ninguem o trabalho de um genio, pareceu a agglomeração das lendas de um povo. Escripta em um verso tão elevado quanto claro, tinha a altura e a transparencia de um bello ceo; nobre no sentimento, generoso, religioso, e antes que tudo grego, era realmente o poema da Grecia legendaria. E' por isso que se póde dizer que esses poemas são a expressão de sua epoca, por que correspondem-lhe a todas as necessidades, manifestam-lhe todos os sentimentos, passam do genio do poeta para a memoria do povo, e são, apezar de toda a sua sublimidade e por causa d'ella, a linguagem mesma de uma geração primitiva e ingenua. A Iliada é o livro da historia, da moral, da politica de um povo antigo; é a Biblia da Grecia. O genio de um homem podia tel-a concebido, mas só o genio de um povo poderia tel-a realisado, com tal vastidão, tal grandeza e tanta simplicidade. A parte de Homero póde ser grande no poema, mas é pequena ao lado da do povo. Convem não esquecer que esse poema não tem uma perfeita unidade, que parece duas acções epicas, duas epopéas fundidas em uma, a de Ilion e a de Achilles. Como quer que se julgue, o poema é uma epopéa nacional, a saber a agglomeração de muitas lendas, o livro da lei, das tradições, dos oraculos; a expressão em verso dos sentimentos do povo, a linguagem divina da admiração e da esperança nacional; cada um queria aprendel-o depois de tel-o ouvido, porque antes todos o sonharam. Como differe, porém, d'esse monumento de uma sociedade nova o monumento epico das idades litterarias, baptisadas sob o nome de um homem, como os seculos de Augusto, dos Medicis, e de Luiz XIV! Como differem mesmo d'essa simplicidade antiga, de que a Iliada é o mais notavel exemplo na familia aryana, como a Biblia o éna semitica, as producções de épocas de mais gravidade e seriedade, do que os seculos marcados com a effigie de um despota illustre! A fé primitiva, a expontaneidade, a ingenuidade e a virgindade do coração, e um aroma incomparavel de solidão, de madrugada, de vida que começa, de um mundo que se fórma, tudo que ha n'essas grandes florescencias das eras mythicas, chamadas as epopéas, não existe nos poemas individuaes. A Eneida é de certo escripta em verso como a Iliada, sobre o plano da Iliada; mas quem não reconhece logo em uma o engenho litterario de um poeta, em outra o genio inventivo de um povo? quem não về que uma reflecte a civilisação romana, com suas convenções, sua medida, sua arte poetica, sua mythologia, e que a outra é a fórma ampla, vigorosa, original, de um povo adolescente ? As epopéas formam-se sem esforço pelo lento trabalho dos seculos. Cada poeta liga á essa cadeia das tradições cantadas um novo élo; a memoria do povo torna-se assim o pergaminho em que cada Aedes ou Skalda escreve o seu hymno. Em cada festa há um lugar para o poeta. Elle é o sacerdote da tribu, como Orpheu; é o oraculo, o guerreiro, o legislador, a tradição viva. Deliciosa vida a d'esses tempos, que não podem ser comparados ao nosso pelo progresso material, nem pelo adiantamento das sciencias, e em que, todavia, o genio tinha um culto, e a intelligencia representava o papel de predestinada! Era por esse respeito religioso, que cercava os homens de genio, que a missão do poeta era sagrada, e que todos emulavam em dar aos mysterios, ás legendas, aos mythos, e ás tradições populares uma fórma, ao mesmo tempo sublime para ser admirada, e simples para ser comprehendida. Com o trabalho de duas gerações a epopéa estava feita; das antigas epopéas homericas só nos restam duas, mas o seu numero devera ser muito maior. Do cyclo epico talvez só possuamos as obras primas. E' assim que se formam essas narrações seguidas em um metro uniforme, é assim que ellas gravam-se lentamente na memoria dos rhapsodas, até que um dia quando o povo recebe o alphabeto fixam-se por escripto em uma fórma definitiva. Poder grande de invenção é por certo esse das eras primitivas em que sem o auxilio do alphabeto compõem os poetas, não somente cantos isolados, como os que formam o cancioneiro de Portugal e Hespanha, mas poemas historicos, religiosos, politicos e guerreiros como a Iliada! O poema individual, os Lusiadas por exemplo, forma-se de um modo mui diverso. Lendo os outros poemas, Camões viu que eram elles os mais altos vôos do genio humano, e quiz desprender o seu. Mediu seu talento com a segurança de quem realmente o possue, e não lhe viu fronteiras; desde então sua musa facil, amorosa, terna e melancholica, tornou-se a musa epica, e no fim de alguns annos realisou elle o que entre os povos adolescentes é trabalho para seculos, ainda que as qualidades intrinsecas de um e outro momento não sejam equivalentes. Eis porque nós dissemos que traços profundos separam os dois ramos da familia epica; um não tem a frescura de sentimento, o viço de mocidade, o enthusiasmo religioso, a fé sincera, a solemnidade e a uncção de um oraculo, que existem no outro; umé a resultante do genio de muitas gerações, o outro é o esforço de uma unica intelligencia. „Não conheço prova mais maravilhosa e esplendida do genio, diz Macaulay fallando de Milton, do que um grande poema produzido em uma idade civilisada. Os grandes poemas são a vegetação luxuriosa de um mundo novo; tentar renoval-os depois que sua época passou, é querer reproduzir a creação. Essa obra alguns poetas realisaram-na, mas o que elles não poderam fazer, foi tirar ao poema o reflexo de seu tempo, nem dar-lhe a côr local de uma outra sociedade. Os grandes poemas das idades civilisadas são os maiores esforços da intelligencia no mundo; um homem por si só faz o trabalho de um povo, alguns annos produzem o fructo de seculos. Se nas epopéas nacionaes ha toda a novidade de coração e de idéa, propria de um povo adolescente, o merito não é do poeta, é de seu tempo. O poeta que cantou a guerra de Troia não tinha mais genio que o cantor do descobrimento das Indias, o que se deve dizer é que o seculo XVI não é o mesmo que o seculo pre-historico em que Ilion cobriu de suas cinzas o solo Troiano. A differença pois que se nota entre os dois grandes ramos da epopéa-a nacional e a individual é o resultado da differença existente entre os dois estados de civilisação que se representam por esses monumentos. De todos os poemas o que mais se approxima da epopéa nacional é os Lusiadas. Elle tem, sob a forma medida, artistica, de um seculo litterario, a fé ardente, o patriotismo puro, o culto das tradições populares de idades menos adiantadas; é elle tambem o deposito das lendas, dos fastos, e das lembranças do povo; é, como a Iliada foi o poema da Grecia legendaria, o poema do Portugal heroico. Esta unica vantagem dos Lusiadas faz delle na escala epica o segundo dos poemas, e de seu autor um dos genios mais vastos que a humanidade já viu surgir em seu seio. Camões deu a seu paiz um poema ungido dos sentimentos mais puros e estremes; escreveu sob a fórma epica a historia toda da monarchia; realisou por si só a obra dos antigos Aedes e dos Skaldas do norte; fez, em uma palavra, - em pleno seculo XVI - depois da imprensa e da inquisição, um poema nacional! |