radas familias de Santarem: fundamento evidentemente tão fragil, que só poderá receber alguma consistencia da grande escuridade da historia do poeta. - Eis o que nos occorre dizer sobre o assumpto do presente artigo. Que as tres rivaes Lisboa, Coimbra e Santarem continuam embora a disputar entre si o berço do grande poeta; a quarta — Alemquer —, não tem de certo direito nem fundamento, algum para entrar na liça.» Replicando ao sr. Sotto Maior (pag. 374 e 375), o sr. Vidal insistiu na sua anterior apreciação por se lhe ter aligurado não fóra de proposito; mas declarando que estava prompto a rejeitar como falsas as suas probabilidades », porque o que lhe importava era que o poeta fosse portuguez. O sr. D. Miguel de Sotto Maior (a pag. 400) agradeceu as explicações, affirmando, sem offensa do seu esclarecido contendor, o que desejava averiguar e lhe parecêra acertado, para que alguem não inferisse que o satisfizera a interpretação dada pelo sr. Vidal ao soneto C de Camões ». E acrescenta : «Declarâmos ingenuamente, que essa interpretação nos parece demasiadamente arbitraria para que hajâmos de conformar-nos com ella. Continuâmos, portanto, a ver n'aquelle soneto o epitaphio dorido e triste (como devia ser) escripto pela mão de uma amisade sincera sobre a campa immensa do amigo infeliz... » Em 1872 surgiu novamente á téla da discussão este assumpto. O reverendo padre Caetano de Moura Palha Salgado perguntou á redacção da Gazeta setubalense, se, fundado no soneto C, podia considerar-se Alemquer a patria de Ca mões. Respondeu a redacção (representava-a então na parte historica e litteraria o sr. Manuel Maria Portella) d'este modo em o n.o 162 de 30 de junho: a « O soneto, a que allude o sr. padre Moura, parece em verdade dar motivo á supposição referida, e tem sido assás commentado no sentido em que s. s. o tomou, e ainda o tem sido tambem a estancia LXI do canto ш dos Lusiadas, em que o famoso epico falla com notavel distincção da villa de Alemquer; mas Faria e Sousa, Domingos Fernandes, Manuel Correia e outros biographos de Camões asseveran que este nasceu em Lisboa, e da mesma opinião partilha o sr. visconde de Juromenha, se bem que tal opinião nos não pareça de todo irrefutavel, pelos fundamentos em que assenta.»> Em o n.o 167 da mencionada Gazeta (de 4 de agosto) o reverendo padre Moura affirma e amplia a sua opinião, e escreve que, no tocante a materias, que admittem livre discussão, jamais adoptaria o magister dixit;» e em defensa da sua critica acrescenta: A base do meu argumento é o soneto centesimo (da edição de 1772, offerecida ao ex.mo marquez de Pombal), em que o poeta falla de si; se fallasse de outrem, de certo o manuscripto d'onde elle passou para a imprensa, havia de ter forçosamente alguma nota, o contrario não é verosimil. Como póde admittir-se que um poeta que faz um soneto, em que seguindo, como era tanto do seu costume, o sentido figurado, e ás vezes n'um estylo bastante escuro, quer dizer que pouco antes de fazer vinte e cinco annos deixou as consolações do lar, da patria, e seus amores, e principiaram os seus trabalhos e desgraças, soffrendo um grande contratempo nos mares da Abassia, onde esteve a ponto de servir de pasto aos peixes; e os cinco lustros que elle não viu acabados estão em harmonia com o que se diz no documento, por Faria e Sousa, que é a lista dos individuos, que em 1550 iam embarcar para a India, em que se le o seguinte: Luiz de Camões, filho LUIZ de Simão Vaz, e Anna de Sá, moradores, em Lisboa, á Mouraria, escudeiro de vinte e cinco annos, de barba ruiva trouxe por fiador a seu pae; vae na nau de S. Pedro dos Burgalezes; e note-se bem que não se diz ahi que era filho de Lisboa. As saudades que pelo seu puro, suave e rico Tejo, elle deixa transpirar, em todas as suas obras, formam um argumento muito fraco, a que se acolhem os patrocinadores da opinião contraria; preferia, sem duvida, Lisboa a Alemquer, ja pelas bellezas do local, já pelo tão natural sentimento da educação; assim como eu prefiro Setubal, para onde vim da idade de cinco annos, á minha terra natal, e tanto isto é verdade, que posso affirmar que em qualquer parte do orbe que eu estivesse, sempre havia de ter mais saudosa recordação da linda terra de Bocage, que da encumeada Palmella; e alem das saudades do seu Tejo, saudades que o poeta desafoga com tanto sentimentalismo, que mais poderão os adversarios allegar a favor da naturalidade de Lisboa? Julgo que não serão capazes de me citar expressões do poeta pelas quaes elle dê a entender ter nascido na capital; ao me. nos, ainda não encontrei nas suas obras, que tenho folheado; se m'as mostrarem, dar-me-hei logo por convencido. Na canção ix (da edição já referida), tornando a fallar do mar de Abassia, parece referir-se ao mesmo contratempo, de que fez menção no soneto alludido; e o que tambem é fóra de duvida é que elle falla de si proprio, não se podendo attribuir a dita canção a outro sujeito, pela circumstancia de se fazer n'ella menção do Monte Feliz na Arabia, para onde elle tinha sido desterrado em 1556, e n'esta canção, queixando-se dos grandes trabalhos com que o perseguia a sua estrella adversa, apresenta-se outra vez a fallar de si como já morto... >> O sr. padre Moura transcreve parte da canção citada, e termina: « Fico por aqui: nem julgo que mais seja necessario para fundamentar a minha primeira asserção, que v. já fez o especial obsequio de inserir nas columnas do seu muito lido e acreditado jornal. Se as rasões em que me fundo não forem acceitas pelos homens competentes, paciencia, unusquisque in suo sensu abundet, nem por isso me desgostarei á vista da contradicção, porque para mim a verdade está acima do amor proprio, e de bom grado me sujeítarei a ella, quando se me faça ver o contrario do que defendo, com rasões mais solidas do que aquellas, que até aqui se têem apresentado, restando-me a consolação de que não obstante a diversidade de pareceres ácerca do berço do nosso divino epico, o que não admitte controversia é o ter elle nascido portuguez, e isso basta para todos ficarmos contentes. >> Então o sr. Portella, em nome da redacção da Gazeta setubalense, pedíra ao benemerito auctor do Dicc. bibliographico, que interviesse n'esta interessante controversia, e emittisse o seu muito considerado parecer ácerca da patria de Camões. Innocencio acquiesceu ao pedido, e escreveu duas extensas cartas para serem publicadas na Gazeta. A primeira appareceu no dia 22 de setembro do mesmo anno, e tem a data de 15; e a segunda no dia 11 de janeiro de 1873, e tem a data de 2 (n.o 174 e 190 da Gazeta). Da primeira carta copio o seguinte: «Referindo-se a opinião que pretende revocar para Alemquer a gloria de haver dado o berço a Luiz de Camões (opinião já manifestada em diversos tempos, e agora novamente e com maior insistencia trazidas á discussão n'essa cidade pelo reverendo padre Caetano de Moura Palha Salgado, expostas a principio em brevissimo artigo no n.o 162 da Gazeta setubalense, e depois sustentada e desenvolvida em carta publicada no n.o 167 do mesmo jornal) deseja v. s. que se The forneçam argumentos solidos e rasões convincentes que, dissipando de uma vez todas as duvidas, o habilitem para assentar segura e irrefragavelmente o seu juizo controvertido: isto é, ácerca da disputada naturalidade do nosso grande epico. «Nem é só esse (infelizmente para os que ainda n'estas cousas tomam calor ou interesse) o unico ponto que até agora pende indeciso e cada vez mais questionavel na vida d'aquelle que a deixára, como de si proprio nos diz: Por o mundo em pedaços repartida muitos outros ha igualmente problematicos, cuja solução, em falta de documentos coevos e authenticos, tem escapado e continuará a escapar ainda aos biographos que mais presumem de atilados e perspicazes. De alguns poderei talvez, em occasião de mais folga, entreter-me com v. s. Ficaram sendo para nós como outros tantos enygmas, que só o poeta poderia decifrar-nos, se voltasse de novo ao mundo, ou se evocado por algum espiritista (no caso de achar-se em disponibilidade) quizesse dar-se ao trabalho de nol-os pôr patentes! No assumpto sujeito, pois que deseja sabel-o, direi a v. s. a minha opinião, embora de pouco ou nenhum peso, n'isto como em tudo. Para mim a patria de Camões é indubitavelmente Lisboa. Entre as muitas rasões de congruencia que assim m'o persuadem, não é das menos attendiveis, ou talvez prepondera sobre todas, equivalendo quasi a prova testemunhal, a auetoridade de Manuel Correia, contemporaneo e amigo do poeta, ao qual tratára de perto, e de quem positivamente affirma ser elle aqui nascido 1. Para invalidar um testemunho tão valioso quanto insuspeito, haver-se-iam mister (ao menos assim o creio) argumentos mais concludentes que os até agora adduzidos pelos que se declararam a favor de outras naturalidades. Com respeito especialmente aos que pugnam por Alemquer, essa pretensão, como digo, não é nova, ainda que com pouca fortuna data de tempos longinquos, pouco arredados do obito do poeta. Não sei, nem nomeadamente me consta do sujeito que então a sustentasse por escripto; mas de certo já existia, quando Manuel de Faria e Sousa, escrevendo passados de cincoenta a sessenta annos depois d'aquelle fallecimento, a elle se refere e escarnece dos que lhe queriam dar voga. Haja vista o seu commentario ao celebre soneto C, que apparecêra pela primeira vez impresso na edição das Rimas de 1598, e no qual os sequazes de tal opinião julgavam, como ainda agora julgam, achar o fundamento inconcusso da sua affirmativa. Como, por ser a obra pouco vulgar, v. s.a não a terá talvez á vista, permitta-me que transcreva aqui textualmente ao menos os primeiros periodos: Es tal la ignorancia y ceguidad de muchos presumidos de letras, y de entendimiento, que no faltaron algunos que dixeron hablava el poeta de si en este soneto; gobernando-se (a lo que parece) por lo de que padecio el semejantes malas fortunas en su vida a las que refiere aqui; como si el mundo las tuviesse guardadas tales para el solo. Destes (que no de arrieros, segadores, sastres, ó ganapanes) es que Christo, unica ciencia, dixo Stultorum infinitus est numerus. Y esportilleros he visto yo con mas entendimiento que algunos que tienen muchos libros, y que los hazen. Entre estas classes de tontos, pues, estan los que dixeron lo referido; pues estando en este soneto una gigirandula ó mil arandelas de luzes, que bien mostram lo contrario, ninguna los alumbró. Mostraré las que fueron bastantes, etc., etc.>> Não seja para v. s.a causa de espanto ou maravilha o desabrimento em que o bom de Faria chacoteia esses, quem quer que elles fossem, que aventavam uma opinião no seu entender erronea. Terá visto e admirado por certo em nossos dias, n'esta epocha de verdadeiro progresso e civilisação, o primor e cortezia que costumam empregar, quer na impugnação quer na defensa, os nossos enfatuados 1 Commentario aos Lusiadas no canto 1, estancia 1. LUIZ sabios de mez e meio, que assumiram a gloriosa tarefa de alumiar o mundo até agora ás escuras! « Não acho memoria ou vestigio de que desde o anno de 1685, em que saíram á luz posthumos os Commentarios de Faria, até o seculo presente, se renovasse, ao menos pela imprensa, a pretensão alludida. Parece que deixaram jazer em boa paz o soneto C, e não mais se fallou para tal em Alenquer durante esse intervallo. « Foi por fins de 1827 ou principios de 1828, epocha em que me habituára a frequentar mais assiduamente a bibliotheca publica d'esta cidade, que travando ahi conhecimento com o finado D. Gastão da Camara Coutinho a elle ouvi pela primeira vez na conversação que tivemos (com o respeito que por aquelles tempos os rapazes de dezoito annos costumavam consagrar aos homens encanecidos no estudo e que logravam dos contemporaneos farna de doutos e letrados) dar como certo e indubitavel que Camões nascêra em Alemquer, estribado, já se entende, nas preconisadas clausulas do soneto C: Creou-me Portugal na verde e chara «E cumpre-me não deixar em silencio que D. Gastão apresentava isto como descoberta propria, e com ares de extranheza de que até então ninguem attentasse em tal! Eu, que n'aquelle tempo, e annos depois, jurava ainda nas palavras do padre Thomas José de Aquino, para quem o soneto C era tido de plano como allusivo a morte tragica do soldado Ruy Dias (logo veremos isso), mandado enforcar a bordo por Affonso de Albuquerque, não me dei por convencido. Certo porém de que seria trabalho inutil o de contrarial-o, evitei qualquer contestação, e ficamos cada qual na sua crença. « Bons quarenta annos se volveram depois do facto alludido. Eis que no de 1867, ao inaugurar-se em Lisboa a estatua com que Portugal, resarcidos antigos esquecimentos, pagava ao cantor predilecto de suas glorias uma divida de honra, entre outras commemorações a que déra occasião esse acto solemne, appareceu no Archivo pittoresco (tomo x, pag. 220 e seguintes) um estudo biographico-critico ácerca do poeta, traçado pela penna elegante e conceituosa do sr. E. A. Vidal. N'esse estudo vi que o illustre escriptor, a proposito da naturalidade, se declarava por Alemquer, fundado sempre nas citadas clausulas do soneto C, a que chama documento irrefragavel e que tira (diz) todas as duvidas, «pois que Camões em«bora não tivera nunca certidão de baptismo, havia de saber de sciencia certa a «terra onde fôra nascido». « Recordo-me de que ao ler isto tive idéa de trazer a publico os meus humildes reparos concernentes a mostrar, se é possivel, de uma vez e á luz da verdade, o que seja e o que valha para o caso o celeberrimo soneto C, destruindo pela raiz a hypothese insustentavel dos que desattentadamente pretendem ver n'elle o poeta fallando de si proprio. «Porém andava eu n'aquelle tempo tão farto e aborrido de polemicas infructiferas, que tive por melhor calar-me, e guardar para mais opportuno ensejo o desenlace da questão. <«< Entrarei n'ella agora para satisfazer a v. s.", porém vejo que diffusamente me tenho alongado por modo que já não é possivel concluir n'esta carta o que ha para dizer. Para poupar-lhe, e aos que porventura houverem de lel-a, maior enfadamento, porei hoje ponto, e continuarei ámanhã com a analyse do sempre invocado soneto. Da segunda carta de Innocencio transcrevo o seguinte: Para bem fixarmos as idéas, convem trasladar para aqui na sua integra o soneto, que nas edições camonianas figura sob o numero C, e em cujo contexto se pretende achar a prova demonstrativa de que fôra o poeta nascido em Alemquer. Diz assim: No mundo poucos annos, e cançados, Corri terras, e mares apartados, Creou-me Portugal na verde e chara Me fez manjar de peixes, em ti bruto « Sob dois aspectos differentes póde esta peça ser tomada á primeira vista, na fórma subjectiva em que se nos apresenta. Ou o auctor quiz n'ella referir-se a si, e a successos seus, ou não fez mais do que uma prosopopéa posta como que para servir de epitaphio, na boca de um terceiro, que conforme as clausulas do texto, acabou a vida no mar de Abassia, e ahi ficou sepultado para ser comido dos peixes. «Nenhuma duvida ou repugnancia offerece este segundo presupposto, adoplando-o como verdadeiro; mormente aos que, por terem sufficiente lição das rithmas do poeta, sabem ser elle avezado a esta especie de composições, em que até por mais de uma vez empregou o modo dialogístico. Haja vista, por exemplo, aos sonetos XXXVII a Não passes caminhante, etc. — e LXXXIII « Que levas, cruel morte? etc., etc. » E em nenhum d'estes veiu jamais á cabeça de alguem dizer que o Camões tratasse de alludir á sua propria pessoa, comquanto (note-se) sejam ainda agora, e ficarão talvez para sempre questionaveis á luz da critica os individuos, que serviram de thema a esses cantos deploratorios 1. Eis o que, similhantemente, na hypothese que adoptámos, acontece com o soneto C. Ignora-se, nem será talvez possivel descobrir de futuro, quem fosse o sujeito, morto no mar de Abassia, cujo fim desventurado lhe serviu de assumpto. Provavelmente, algum desconhecido, amigo ou camarada do poeta, que com elle militou. Os que suppozerem o soneto allusivo ao tragico fim do soldado Ruy Dias, mandado enforcar por Affonso de Albuquerque, caíram (seja dito de passagem) em redondo engano; porque esse facto occorreu a grande distancia do mar de Abassia, isto é, no rio de Goa, onde a armada tivera de invernar, e fez larga detença, como é notorio em João de Barros, que na decada II, livro v, capitulo VII, relata miudamente o caso com todas as circumstancias concomitantes. Nem mesmo sei como racionalmente podesse dizer-se que morrêra de ar corrupto um homem que foi enforcado! Vamos, porém, á primeira hypothese, e vejamos se longe de ser igualmente admissivel, não ha, pelo contrario, argumento decisivo, que nos force a rejeital-a in limine, por absurda e de todo inconciliavel com a verdade de factos sabidos. Vejam-se na edição do sr. visconde de Juromenha as respectivas annotações a estes sonetos, no tomo II, pag. 385 e 421. Com isto respondo tambem, incidentemente, á prova negativa que o reverendo C. de Moura Palha Salgado adduz para sustentar a sua opinião. Camões foi sempre escassissimo em pôr algumas rubricas nos seus versos, legando esse cuidado aos commentadores. |