O Mestre morre alli de Sanct-Iago, Que fortissimamente pelejaya: Morre tambem, fazendo grande estrago, Outro Mestre cruel de Calatrava: Os Pereiras tambem arrenegados Morrem, arrenegando o Ceu, e os fados.
Muitos tambem do vulgo vil sem nome Vão, e tambem dos nobres, ao profundo, Onde o trifauce cão perpetua fome (62) Tem das almas que passam deste mundo: E, porque mais aqui se amanse e dome A suberba do imigo furibundo,
A sublime bandeira castelhana Foi derribada aos pés da lusitana.
Aqui a fera batalha se encruece Com mortes, gritos, sangue e cutiladas; A multidão da gente, que perece, Tem as flores da propria côr mudadas. Já as costas dão, e as vidas; já fallece O furor, e sobejam as lançadas: Já de Castella o Rei desbaratado Se vê, e do seu proposito mudado.
O campo vae deixando ao vencedor, Contente de lhe não deixar a vida: Seguem-no os que ficaram; e o temor Lhe då, não pés, mas azas á fugida. Encobrem no profundo peito a dôr Da morte, da fazenda despendida, Da magoa, da deshonra e triste nojo De ver outrem triumphar de seu despojo.
Alguns vão maldizendo, e blasphemando Do primeiro que guerra fez no mundo;
Outros a sede dura vão culpando Do peito cubicoso, e sitibundo, Que, por tomar o alheio, o miserando Povo aventura ás penas do profundo; Deixando tantas mães, tantas esposas, Sem filhos, sem maridos, desditosas.
Obras de Luiz de Camões 1852-pag. 132.
Mas neste passo assim promptos estando, Eis o mestre, que olhando os ares anda, O apito toca: acordam despertando Os marinheiros d'uma e d'outra banda: E, porque o vento vinha refrescando, Os traquetes das gaveas tomar manda: Alerta, disse, estae, que o vento cresce Daquella nuvem negra que apparece.
Não eram os traquetes bem tomados, Quando dá a grande, e subita procella: Amaina, disse o mestre a grandes brados, Amaina, disse, amaina a grande vela. Não esperam os ventos indignados Que amainassem; mas junctos dando nella, Em pedaços a fazem, c'um ruido, Que o mundo pareceu ser destruido.
O Ceu fere com gritos nisto a gente, Com subido temor, e desacordo, Que no romper da vela a nau pendente Toma grão somma d'agua pelo bordo.
Alija, disse o mestre rijamente, Alija tudo ao mar: não falte acordo: Vão outros dar á bomba, não cessando: A bomba, que nos imos alagando.
Correm logo os soldados animosos A dar á bomba; e tanto que chegaram Os balanços, que os mares temerosos Deram á nau, n'um bordo os derribaram. Tres marinheiros duros e forçosos, A menear o leme não bastaram;
Talhas lhe punham d'uma e d'outra parte. Sem aproveitar dos homens força, e arte.
Os ventos eram taes, que não poderam Mostrar mais força d'impeto cruel, Se para derribar então vieram
A fortissima torre de Babel.
Nos altissimos mares, que cresceram, A pequena grandura d'um batel
Mostra a possante nau, que move espanto, Vendo que se sustem nas ondas tanto,
A nau grande em que vae Paulo da Gama Quebrado leva o mastro pelo meio, Quasi toda alagada: a gente chama Aquelle que a salvar o mundo veio. Não menos gritos vãos ao ar derrama Toda a nau de Coelho, com receio, Com quanto teve o mestre tanto tento, Que primeiro amainou, que désse o vento.
Agora sobre as nuvens os subiam As ondas de Neptuno furibundo: Agora a ver parece que desciam As intimas entranhas do profundo.
Noto, Austro, Boreas, Aquilo queriam (63) Arruinar a maquina do mundo:
A noite negra, e fèia se allumia Co'os raios em que o polo todo ardia.
As Halcyoneas aves triste canto (64) Juncto da costa brava levantaram, Lembrando-se de seu passado pranto, Que as furiosas aguas lhe causaram. Os delphins namorados entretanto Lá nas covas maritimas entraram, Fugindo á tempestade, e ventos duros, Que nem no fundo os deixa estar seguros.
Nunca tão vivos raios fabricou Contra a fera suberba dos gigantes O grão ferreiro sordido, que obrou Do enteado as armas radiantes: (65) Nem tanto o grão Tonante arremessou (66) Relampagos ao mundo fulminantes
No grão diluvio, d'onde sós viveram,
Os dous, que em gente as pedras converteram.
Quantos montes então que derribaram As ondas que batiam denodadas! Quantas arvores velhas arrancaram Do vento bravo as furias indignadas! As forçosas raizes não cuidaram Que nunca para o Ceu fossem viradas; Nem as fundas areias que podessem
Tanto os mares, que em cima as revolvessem.
Descripção da ilha dos Amores
Tres formosos outeiros se mostravam Erguidos com suberba graciosa, Que de gramineo esmalte se adornavam, Na formosa ilha alegre, e deleitosa: Claras fontes, e limpidas manavam Do cume, que a verdura tem viçosa: Por entre pedras alvas se deriva A sonora lympha fugitiva.
N'um valle ameno, que os outeiros fende, Vinham as claras aguas ajunctar-se, Onde uma meza fazem, que se estende Tão bella, quanto póde imaginar-se: Arvoredo gentil sobre ella pende, Como que prompto está para affeitar-se, Vendo-se no crystal resplandecente, Que em si o está pintando propriamente.
Mil arvores estão ao ceu subindo Com pomos odoriferos e bellos: A larangeira tem no fructo lindo
A côr, que tinha Daphne nos cabellos: (67) Encosta-se no chão, que está caindo A cidreira co'os pezos amarellos:
As arvores agrestes, que os outeiros Tem com frondente coma ennobrecidos, Alemos são de Alcides, e os loureiros Do louro Deus amados, e queridos;
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